A grande farsa (Miguel Reale Júnior)

Kerrie Howard, diretora da Anistia Internacional, ao comentar a posição do Brasil em face da morte do dissidente cubano Orlando Zapata, disse, com a mais absoluta razão: “Não se pode criticar a questão dos direitos humanos apenas quando é conveniente.”

Todavia, essa submissão da defesa dos direitos humanos pelo governo Lula a outros interesses não é novidade, como revela a posição assumida em órgãos internacionais. Assim, quando da vigência da Comissão de Direitos Humanos da ONU, substituída depois pelo Conselho de Direitos Humanos, o país de Lula votou favoravelmente à no-action motion para proteger a China na questão dos direitos humanos. O Brasil, em 2003 e em 2004, votou contra as resoluções que condenavam a Rússia pela lesão a direitos humanos na República da Chechênia.

Recentemente, como um dos 47 membros do Conselho de Direitos Humanos, o Brasil acompanhou a proposta cubana de não reprovar o Sri Lanka, país onde cerca de 70 mil pessoas haviam sido mortas em perseguição política e centena de milhares, deslocadas internamente.

Apesar da violação sistemática de direitos humanos na Coreia do Norte, com execuções e torturas de dissidentes políticos, o Brasil se absteve, em 2008 e em 2009, na Assembleia-Geral da ONU e no Conselho de Direitos Humanos, quanto à tomada de medidas e sanções em face dessas ofensas gritantes. O mesmo com o Congo e o Sudão.

Na linha de desprezo aos direitos humanos, vistos como válidos apenas quando interessa, o “diplomata” Marco Aurélio Garcia banalizou a morte de Orlando Zapata, em greve de fome, ao relativizar: “Há problemas de direitos humanos no mundo inteiro.” Essa declaração é um gravíssimo desrespeito a valores fundamentais, pois cinicamente justifica a sua afronta por ser usual.

Discípulo do “diplomata” Marco Aurélio, o presidente Lula, em El Salvador dois dias após a morte de Zapata, disse: “Não se pode fazer julgamento de um país ou julgar a atitude de um governo por uma atitude de um cidadão que resolve entrar em greve de fome.”

Lula tratou como um cidadão qualquer o dissidente Zapata, em greve de fome como ato de resistência civil silenciosa e preso de consciência conforme a Anistia Internacional, dando ao fato cores de ato de cidadão tresloucado, ao qual se refere como um qualquer, ignorando ter sido preso em vista de seus escritos e suas manifestações de oposição política.

Em entrevista à Associated Press, Lula explicitou toda a sua “sensibilidade” aos direitos humanos de presos políticos: “Greve de fome não pode ser um pretexto dos direitos humanos para libertar as pessoas.” “Imaginem se todos os bandidos presos em São Paulo fizerem um jejum para pedirem sua libertação.”

O que espanta não é Lula ter dito isso. Os absurdos presidenciais têm sido reiterados, apesar deste não ferir apenas a nossa inteligência, mas a nossa sensibilidade moral. O que espanta é o contraste: o Lula de ontem e o de hoje.

Lula teve o exemplo de dois de seus próximos colaboradores, Paulo Vannuchi e Frei Betto, que, como presos políticos, empreenderam greve de fome em 1972 em busca da justa reivindicação de não serem separados em diversos estabelecimentos, como medida de segurança pessoal. Essa greve com emoção é relatada por Frei Betto nos livros Cartas da Prisão e Diário de Fernando. Nesse último livro, que reproduz o testemunho de outro preso, Frei Fernando Brito, registra-se que até os carcereiros vieram solidarizar-se com eles em greve de fome.

O secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Ivo Lorscheiter, enviou à época carta ao ministro da Justiça pedindo que as reivindicações dos presos em greve de fome fossem atendidas. Conta Frei Fernando: “A greve de fome aprofunda-nos a vida espiritual… o sentido evangélico de nosso gesto.” Em Cartas da Prisão, Frei Betto, com seu estilo preciso, diz sobre a greve de fome: “Não é fácil controlar o apetite da imaginação. Ainda bem que o espírito se mostra mais forte que a carne.”

Em 11 de dezembro de 1989, às vésperas do segundo turno entre Lula e Collor, Abílio Diniz foi sequestrado por ativistas políticos (argentino, chileno e canadense) que desejavam arrecadar fundos para a guerrilha em El Salvador. Condenados, passados dez anos, entraram em greve de fome exigindo o retorno a seus países. Lula foi visitá-los no Hospital das Clínicas. Ligou, então, para o presidente Fernando Henrique para pleitear que fossem atendidos, argumentando que a morte mancharia a biografia do presidente.

José Gregori, secretário nacional de Direitos Humanos, em conjugação com o Itamaraty, promovia a assinatura de tratado de troca de prisioneiros com a Argentina e o Chile, a permitir o envio dos presos a seus países. Durante o tempo em que havia as tratativas para essa troca de prisioneiros, a Secretaria de Direitos Humanos, conta José Gregori, recebia telefonemas de Marco Aurélio Garcia em campanha pela expulsão dos presos em greve de fome.

Em 2000, professores paranaenses entraram em greve de fome para reivindicar melhoria salarial e em Curitiba receberam a visita de solidariedade de Lula.

Lula mesmo, quando preso político, fizera greve de fome.

Se não fosse evidente a distinção entre preso político e preso comum, a experiência vivida por Lula deveria tê-lo instruído sobre a diferença entre as duas classes de presos. Para Lula, o respeito a merecer os presos políticos estava à mão, nos livros e na vida de amigos acima lembrados. Mas Lula preferiu, com relação a Zapata, seguir o determinado pela versão do jornal oficial de Cuba, o Granma, que o descreveu como preso comum insubordinado.

Lula pôs no mesmo saco presos políticos e comuns para desculpar Cuba. Antes, já ignorara as ignomínias praticadas na China, na Coreia do Norte, na Rússia e no Sri Lanka.

Como se vê, não passa de uma grande farsa defender os direitos humanos a serem desprezados conforme a conveniência.

(Publicado no Estadão em 3 de abril de 2010)

3 abril, 2010 às 11:09

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Categoria: Artigos

Comentários (10)

 

  1. LEONÍLSON disse:

    Words, words, words…
    De fato, o presidente foi infeliz ao se expressar sobre a situação dos presos políticos cubanos.
    Porém, palavras são palavras; atos, atos.
    É pelos últimos que ele será julgado (favoravelmente, a meu ver) pela história.
    Confrontar seus atos com suas promessas, como outro dia fazia aqui nesse mesmo blog,
    um tal R. Romano, e julgá-lo pela diferença, é típico do moralismo lacerdista, câncer, praga da política brasileira.
    O que importa é o resultado prático e efetivo das políticas implementadas. Não é preciso ser nenhum profeta para ver que o Brasil está muito melhor com Lula, do q

  2. ASTOLFO disse:

    Words, words, words…
    De fato, o presidente foi infeliz ao se expressar sobre a situação dos presos políticos cubanos.
    Porém, palavras são palavras; atos, atos.
    É pelos últimos que ele será julgado (favoravelmente, a meu ver) pela história.
    Confrontar seus atos com suas promessas, como outro dia fazia aqui nesse mesmo blog,
    um tal R. Romano, e julgá-lo pela diferença, é típico do moralismo lacerdista, câncer, praga da política brasileira.
    O que importa é o resultado prático e efetivo das políticas implementadas. Não é preciso ser nenhum profeta para ver que o Brasil está muito melhor com Lula, do que com qualquer outro governo que o antecedeu desde Vargas ou Jango.
    E estará muito melhor ainda, com mais 5 anos de governo democrático e popular no Planalto.
    DILMA PARA PRESIDENTE!!!!!!
    ………………………
    Astolfo de Lima – Monlevade MG

  3. Ronaldo Veloso Romão disse:

    Li somente uma vez um blog que era governista/esquerdista/socialista, discordei do que li e nunca mais entrei lá. Não comentei, não ofendi, não fiz gracinha simplesmente não o visitei mais. Não compreendo o “tesão” que os esquerdistas possuem em bater nos bolgs contrários ao governo e sua visão de mundo. Dá a impressão que eles não leem nem a Carta Capital de tamanha a audiencia de esquerdistas em blogs como o de Reinaldo Azevedo e o do Claudio Mafra. Me parece, só ligeiramente claro, que há mais diverção em bater na direita/liberais-democratas/liberais-conservadores do que criar argumentos, lógicos e reais, para fazer crer que o governo Lula é tão bom quanto essa gente propaga! Demonizar o inimigo, ao invés de argumentar, é uma estratégia que deu extremamente certo no Brasil. Deu tão certo que hoje poucos tem corajem de se intitularem de direita e/ou liberais (na economia claro!), com medo de um grupo da sociedade que nunca quis sentar e debater seus pontos de vista. O socialista/esquerdista/comunista/petista e afins, é sempre o primeiro a usar ofensas pessoais para tentar desqualificar aquele que tem ideias difentes e opostas as suas. Eu me pergunto e pergunto a vocês leitores do blog, por qual motivo?

  4. ASTOLFO disse:

    Prezado Sr. Veloso Romão,
    Com todo respeito pela sua opinião, não julgo ter feito nenhuma ofensa pessoal no comentário que postei acima, por isso, não entendi o propósito do seu comentário. Quanto a Carlos Lacerda, evidentemente, refiro-me a uma tendência política, a um modo de considerar a política, e não à pessoa em si de Carlos Lacerda.
    Atenciosamente,
    Astolfo – Monlevade MG

    • Claudio Mafra disse:

      CAROS ASTOLFO, LEONILSON, E RONALDO: Eu estava almoçando com o Sebastião Nery, e quando ele falou alguma coisa sobre o Lacerda eu disse: ” Que bom que ele morreu na hora certa”. E o Nery : “Por que?” Respondi: ” Porque os oficiais da Aeronática, que o idolatravam, jamais entenderiam ele ser gay”. O Nery ficou petrificado: ” É verdade, mas como é que você sabe disso ?! Nunca encontrei ninguém que conhecesse esse fato!!!” E eu, cheio das fontes primárias de informação: “Sei porque uma amiga estava saindo de um motel com o futuro marido , e quando abriu a porta do quarto deu de cara com ele e um tremendo garotão, que naquele exato momento também estavam saindo. Foi um constrangimento total, não houve nenhuma dúvida sobre o que estava acontecendo”.

  5. Quando a revolução socialista triunfar, sr. Romão, o sr. será enviado a um campo de reeducação em Pernambuco, para aprender a cortar cana e escrever certo, entre outras coisas.
    “Diverção” = DIVERSÃO; “Corajem” = CORAGEM
    Sorry.
    ZÉ EDUARDO – Belo Horizonte

  6. Ronaldo Veloso Romão disse:

    Astolfo realmente você está certo, não houve de sua parte qualquer tipo ofensa pessoal.Contudo acabei generalizando e com isso fui injusto com você, sinto muito de verdade. Agora se você ler o comentário do Zé Eduardo logo abaixo do seu, a propósito agradeço a ele por corrigir os meus erros de gráfia, infelizmente verá ao que eu me referia. Fiquei assustado sobre o campo de reeducação em Pernembuco, de verdade mesmo, espero que a revolução socialista nunca triunfe, pois nunca seria enviado a um campo de concentração para cortar cana, entre outras coisas. Sendo assim meu destino, acredito eu, seria o paredón. Agora irei apreender sim a escrever corretamente o nosso belo idioma, mas através de mais leitura e estudo.

  7. Retornando ainda ao simplório e edificante Romão (no fundo, deve ser uma boa pessoa), é preciso deixar claro que chegamos não para DEBATER, mas para BATER, Romão; não para EXPLICAR, mas para CONFUNDIR.
    Vc sabia, Romão, que os Lancasters ingleses em vôos noturnos sobre o Reich de 12 Anos espalhavam uma chuva de papel metálico picado para despistar e confundir os radares nazistas? Pois então, Romão, esse é o espírito das nossas intervenções.
    E me desculpe, mas tomei um whisky nacional hoje e bateu uma azia braba… outro dia, entro no mérito das falácias de segunda mão do sr. Mafra, que parece ter uma tropa de escudeiros – o sr. Sidnei, o sr. Azevedo e vc mesmo – para rebater as críticas que lhe são feitas. Até loguinho.
    ZÉ EDUARDO – Bh

  8. renaud disse:

    Caro Ze de BH, eu tenho boa saúde, braços forte e não tenho boa ortografia; me candidato a um estagio no campo de reeducação, no belo estado de Pernambuco; mas, por favor, me explique os fatos e frases evocados no artigo de Miguel Junior, proposto para debate pelo Mafra. Assim, irei, então, com mais alegria.
    NB: fiquei 8 meses , na bela ilha de Cuba. Basta sair de Varadero, Havana, ou da marina Hemingway, para sentir o desespero da população escravizada, sem direitos civis ou individual, mas que ainda tem a forca de cair na gargalhada, quando ingenuamente eu perguntava sobre questão de educação e, sobretudo, de saúde. Concedo que mesmo assim muitos cubanos tem um certo orgulho da revolução ( não esqueço, porem, que os únicos órgãos de divulgação são a TV nacional e o famoso Grama (mas claro, todos eles devem ter internet banda larga em casa, provavelmente de graças…)
    Lamente muito a reação de Lula e assessor após a morte de Zapata.

  9. Ronaldo Veloso Romão disse:

    Zé Eduardo, foi muito esclarecedor o seu último comentário. Agora está tudo mais claro. Realmente foi pura inocência de minha parte tentar o debate e/ou o explicação.

    P.S. Muito interessante o exemplo dos Lancasters ingleses, eu ainda não conhecia essa estratégia. E a propósito obrigado pela cordialidade, não fiquei assustado desta vez.

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