A Guerra contra civis: sítio e bloqueio ( Michael Walzer)- a tragédia em Leningrado-fotos

O sítio é a mais antiga forma de guerra total Sua longa história sugere que nem o avanço tecnológico nem a revolução democrática são os fatores cruciais a forçar a guerra a se expandir além dos combatentes. Civis foram atacados junto com soldados, ou com o objetivo de atingir soldados, com tanta freqüência nos tempos antigos como nos modernos. Ataques desse tipo são prováveis sempre que um exército procurar o que se poderia chamar de proteção entre civis e lutar a partir das ameias ou a partir das construções de uma cidade; ou sempre que os habitantes de uma cidade ameaçada procurarem a forma mais imediata de proteção militar e concordarem com a ocupação militar de sua cidade. Com isso, presos no círculo fechado das muralhas, civis e soldados estão expostos aos mesmos riscos. A proximidade e a escassez igualam sua vulnerabilidade. Ou talvez ela não seja tão igualada: nesse tipo de guerra, uma vez iniciado o combate, os não-combatentes têm maior probabilidade de morrer. Os soldados lutam a partir de posições protegidas, e os civis, que absolutamente não lutam, são rapidamente transformados (numa expressão que extraí da literatura militar) em “bocas inúteis”. Alimentados por último, e somente com as sobras do exército, eles morrem primeiro. Mais civis morreram no sítio de Leningrado que nos infernos modernistas de Hamburgo, Dresden, Tóquio, Hiroxima e Nagasaki, somados. É também provável que tenham morrido com mais dor, mesmo que tenha sido de modo antiquado. Diários e memórias de sítios do século XX parecem perfeitamente familiares para qualquer um que tenha lido, por exemplo, a história angustiante do sítio de Jerusalém, de autoria de Josephus. E as questões morais levantadas por Josephus são familiares a qualquer um que tenha refletido sobre a guerra no século XX.

O DIREITO DE IR EMBORA

O sítio de Leningrado

Em Leningrado morreram mais de 1 milhão de pessoas, os suicídios alcançaram a média de 50 por dia, e os pais não deixavam que seus filhos fossem às ruas porque poderiam ser sequestrados em virtude da prática do canibalismo. (CM)

Fotos que são obras de arte:

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Quando seus últimos acessos rodoviários e ferroviários para o leste foram cortados por forças alemãs em avanço, em 8 de setembro de 1941, Leningrado continha mais de 3 milhões de pessoas, das quais cerca de 200 mil eram soldados[9]. Essa era aproximadamente a população da cidade em tempos de paz. Cerca de meio milhão de pessoas tinham sido evacuadas antes do início do sítio, mas o número total tinha sido recomposto por refugiados dos estados do Báltico, do istmo da Carélia e dos subúrbios ao sul e a oeste de Leningrado. Essas pessoas deveriam ter sido transferidas para outro local, e a evacuação da própria cidade deveria ter sido acelerada. As autoridades soviéticas foram de uma ineficácia assustadora. Mas a evacuação é sempre uma questão política difícil. Organizá-la cedo e em grande escala dá uma impressão de derrotismo. É uma forma de admitir que o exército não será capaz de manter sua posição adiante da cidade. Além disso, a evacuação exige um esforço imenso numa ocasião em que, costuma-se dizer, os recursos e o efetivo deveriam estar concentrados na defesa militar. E, mesmo quando o perigo é iminente, é provável que ela enfrente resistência entre os civis. A política contribui para dois tipos de resistência: dos que esperam acolher o inimigo e tirar proveito de sua vitória; e dos que não se dispões a “desertar” da luta patriótica. Inevitavelmente, as próprias autoridades que organizam a evacuação também conduzem uma campanha de propaganda que faz com que a deserção pareça desonrosa. Entretanto, a principal resistência é de natureza não-política, profundamente arraigada em sentimentos de ligação com o lugar e os parentes: a relutância em sair de casa, em se separar de amigos e parente, em se tornar um refugiado.

Por todos esses motivos, a grande proporção de moradores de Leningrado presos na cidade depois de 8 de setembro não é incomum na história dos sítios. Também eles não estavam totalmente presos. Os alemães jamais conseguiram fazer a ligação com forças finlandesas, fosse na margem ocidental, fosse na oriental do lago Lagoda, e assim restava uma rota de fuga para o interior da Rússia, de início pela travessia do lago de barco e depois, à medida que as águas congelaram, progressivamente a é, de trenó e caminhão. No entanto, até que fosse possível organizar comboios em grande escala (em janeiro de 1942), somente um lento filete humano conseguiu escapar por ali. Uma rota de fuga mais imediata estava disponível — através das linhas alemãs. Pois o cerco era mantido ao longo de um amplo arco ao sul da cidade, com muitos quilômetros de comprimento e, em certos locais, bastante esparso Era possível para civis a pé infiltrar-se pelas linhas e, à medida que o desespero crescia na cidade, milhares tentaram essa alternativa. O comando alemão reagiu a essas tentativas com uma ordem, divulgada pela primeira vez no dia 18 de setembro e repetida dois meses depois, de deter as fugas a qualquer preço. Deveria ser usada a artilharia “para impedir qualquer tentativa dessa natureza à maior distância possível de nossas próprias linhas, abrindo fogo o mais cedo possível, para poupar à infantaria… a tarefa de atirar em civis.”[10] Não consegui encontrar nenhum registro de quantos civis morreram em conseqüência direta ou indireta dessa ordem, nem sei dizer se os soldados da infantaria chegaram a abrir fogo. Contudo, se supusermos que o empenho alemão teve sucesso pelo menos parcial, muitos que pretendiam escapar, ao ouvir as granadas ou os tiros, devem ter permanecido na cidade. E ali muitos deles morreram. Antes de encerrado o cerco em 1943, mais de 1 milhão de civis tinham morrido de fome e doenças.

Em Nuremberg, o marechal-de-campo Von Leeb, que comandou o grupo de exército do norte de junho a primeiros meses das operações do cerco, foi acusado formalmente de crimes de guerra em razão da ordem de 18 de setembro. Von Leeb alegou em sua defesa que o que tinha feito era a prática habitual em tempos de guerra; e os juízes, após consulta aos manuais de direito, foram levados a concordar. Citaram o professor Hyde, autoridade americana em direito internacional: “ Diz-se que, se o comandante de um local cercado expulsar os não-combatentes, para reduzir o número dos que consomem seu estoque de provisões, é lícito, embora seja uma medida extrema, força-los a voltar para apressar a rendição.”[11] Não foi feito nenhum esforço para distinguir civis “expulsos” dos que partiam por vontade própria; e é provável que a distinção não faça diferença para a culpa ou inocência de Von Leeb. A vantagem para o exército cercado seria a mesma em qualquer dos dois casos. As leis da guerra permitem aos agressores impedir essa vantagem se puderem. “Poderíamos desejar que a lei fosse diferente”, disseram os juízes, “mas devemos aplicá-la como a encontramos.” Von Leeb foi absolvido.

Os juízes poderiam ter encontrado casos em que civis tiveram permissão para sair de cidades sitiadas. Durante a Guerra Franco-Prussiana, os suíços conseguiram organizar uma evacuação limitada de civis de Estrasburgo. O comandante americano permitiu que civis saíssem de Santiago antes de ordenar que a cidade fosse bombardeada em 1898. Os japoneses ofereceram a saída livre para não-combatentes presos em Port Arthur em 1905, mas a oferta foi recusada pelas autoridades russas[12]. No entanto, todos esses foram casos em que os exércitos agressores esperavam tomar a cidade de assalto, e seus comandantes estavam dispostos a fazer um gesto humanitário — eles não teriam dito que estavam reconhecendo direitos de não-combatentes — que não lhes custaria nada. Entretanto, quando é preciso esperar pela rendição dos defensores, sujeitos à morte lenta pela fome, os precedentes são diferentes. O sítio de Plevna na Guerra Russo-Turca de 1877 é mais típico[13].

Quando as provisões de Osman Pasha começaram a escassear, ele expulsou os velhos e velhas que estavam na cidade e exigiu passe livre para que eles chegassem a Sofia ou Rakhovo. O general Gourko [o comandante russo] negou o pedido e os mandou de volta.

E o estudioso de direito internacional que cita esse caso faz então um comentário: “Ele não poderia ter agido de outro modo sem prejudicar seus planos. “O marechal-de-campo Von Leeb pode ter se lembrado do luminoso exemplo do general Gourko”.

A argumentação que precisa ser feita em oposição tanto a Gourko como a Von Leeb é sugerida pelos termos da ordem alemã de 18 de setembro. Suponhamos que civis russos em grandes contingentes, convencidos de que morreriam se voltassem para Leningrado, tivessem persistido mesmo diante do fogo de artilharia e avançado de encontro às linhas alemãs. Teria a infanta abatido esses civis a tiros? Seus oficiais pareciam não ter certeza. Esse tipo de missão competia a “pelotões de fuzilamento” especiais, não a soldados comuns, mesmo no exército de Hitler. Decerto teria havido alguma relutância, e até mesmo algumas recusas; e sem dúvida a recusa teria sido correta. Ou ainda, suponhamos que esses mesmos refugiados não fossem mortos, mas cercados e detidos. Teria sido aceitável segundo as leis da guerra informar ao comandante da cidade sitiada que eles seriam mantidos sem alimentação submetidos sistematicamente à fome, até que ele se rendesse? Não há dúvida de que os juízes teriam considerado essa opção inaceitável (muito embora às vezes reconhecessem o direito de matar reféns). Eles não teriam questionado a responsabilidade de Von Leeb por essas pessoas que ele havia, na minha segunda hipótese, de fato aprisionado. Mas em que termos o cerco a uma cidade é diferente?

Os moradores de uma cidade, embora tenham feito a livre escolha de morar no interior de suas muralhas, não fizeram a escolha de morar sob o regime de sítio. O sítio em si é um ato de coação, uma violação do status quo, e não consigo entender como o comandante do exército agressor pode escapar da responsabilidade por seus efeitos. Ele não tem direito algum de travar uma guerra total, mesmo que os civis e soldados dentro da cidade estejam politicamente unidos na recusa em se render. A sistemática submissão à fome de civis situados é um daqueles atos militares que, “embora permissíveis pelo costume, constituem uma violação gritante do princípio pelo qual o costume afirma ser regido.”[14]

A única prática justificável, na minha opinião, está na lei talmúdica dos sítios, resumida pelo filósofo Maimônides no século XII (cuja versão é citada por Grócio no século XVII): “Quando uma cidade é sitiada com a finalidade de captura, ela não pode ser cercada pelos quatro lados, mas apenas por três, para dar uma oportunidade de escapar aos que quiserem fugir para salvar a vida…”[15] Essa determinação parece, porém, ser de uma ingenuidade absurda. Omo é possível “cercar” uma cidade por três lados? Seria possível dizer que uma frase dessas comente poderia aparecer na literatura de um povo que não tivesse nem Estado nem exército próprio. É um argumento apresentado não de uma perspectiva militar, mas de uma perspectiva de refugiados. Ele, no entanto, toca no ponto crucial: que na situação calamitosa de um sítio, as pessoas têm direito de ser refugiados. E, portanto, é preciso que se diga que cabe ao exército sitiante a responsabilidade de abrir, se lhe for possível, um caminho para essa fuga.

Na prática, muitos homens e mulheres vão se recusar a partir. Embora eu tenha descrito civis sitiados como pessoas presas numa armadilha, semelhantes a reféns, a vida na cidade não é como a vida num campo de prisioneiros de guerra. Ela é ao mesmo tempo muito pior e muito melhor. Para começar, há trabalho importante a fazer; e há razões comuns para fazê-lo. Cidades sitiadas são palco para um heroísmo coletivo; e, mesmo depois que o amor normal pelo lugar tenha se esgotado, a vida emocional da cidade ameaçada dificulta a partida, pelo menos para alguns cidadãos[16]. Civis que estejam prestando serviços essenciais para o exército naturalmente não terão permissão para partir. Na realidade, eles foram recrutados. Lado a lado com os heróis civis do sítio, eles são daí em diante objetos legítimos de ataque militar. O oferecimento de saída livre transforma todas as pessoas que preferirem permanecer na cidade, ou que sejam forçadas a permanecer, mesmo que ainda estejam em seu “domicílio certo e permanente”, em algo semelhante a uma guarnição militar. Elas abdicaram de seus direitos civis. É mais um exemplo do aspecto coercitivo da guerra que homens e mulheres precisem, nesse caso, deixar o lar para manter sua imunidade. Mas esse não é um julgamento que se faz do comandante do sítio. Ao abrir suas linhas para refugiados civis, ele está reduzindo a coação imediata de sua própria atividade; e, tendo feito isso, é provável que tenha o direito de prosseguir com aquela atividade (supondo-se que ela possua alguma finalidade militar significativa). O oferecimento de livre saída isenta-o de responsabilidade pela morte de civis.

A esta altura, o argumento precisa ser mais generalizado. Venho sugerindo que, quando julgamos as formas de prática de guerra que apresentam um envolvimento íntimo com a população civil, como os sítios (e, como iremos ver, a guerra de guerrilhas), a questão da coação e do consentimento tem precedência sobre a questão do efeito direto e indireto. Queremos saber como os civis vieram a se encontrar em posição de exposição militar: que força foi usada contra eles, que escolhas foram feitas livremente. É ampla a faixa de possibilidades:

1. eles estão sob coação por parte dos que se dizem seus defensores, que deverão portanto dividir a responsabilidade pelas mortes resultantes, mesmo que esses mesmos defensores não matem ninguém;

2. consentem em ser defendidos e, com isso, isentam o comandante militar do exército defensor;

3. foram coagidos por seus agressores, forçados a uma posição de exposição a risco e mortos; e, nesse caso, não faz diferença se a matança é um efeito direto ou colateral do ataque, pois, seja como for, ela é um crime;

4. foram atacados, mas não coagidos, atacados em seu lugar “natural”; e nesse caso o princípio do duplo efeito entra em jogo e o sítio pela submissão à fome é moralmente inaceitável; e

5. foi-lhes oferecida a livre saída por seus agressores, após o quê aqueles que permanecerem podem ser mortos justificadamente, de modo direto ou indireto.

Dessas possibilidades, as duas últimas são as mais importantes, se bem que eu vá querer restringi-las mais adiante. Elas exigem uma inversão bem definida da lei contemporânea, como foi expressa ou reexpressa em Nuremberg, de modo que se possa estabelecer e dar substância a um princípio que é, creio eu, de aceitação comum: o de que soldados têm obrigação de ajudar civis a deixar o local de uma batalha. Quero dizer que, no caso de um sítio, é somente quando cumprem essa obrigação que a batalha em si se torna possível em termos morais.

Mas será que ela ainda é possível em termos militares? Uma vez que a livre saída tenha sido oferecida e tenha sido aceita por um número significativo de pessoas, o exército sitiante fica em certa desvantagem. As provisões da cidade agora durarão muito mais. É exatamente essa desvantagem que no passado comandantes de cercos se recusaram a aceitar. Não entendo, porém, que ela seja de natureza diferente de outras desvantagens impostas pelas convenções de guerra. Ela não torna as operações do cerco totalmente impraticáveis, apenas um pouco mais difíceis — levando-se em conta a crueldade do Estado moderno, é preciso que se diga, infimamente mais difícil; pois é improvável que se permita que a presença de grandes contingentes de civis numa cidade sitiada interfira no suprimento do exército; e, como sugere o exemplo de Leningrado, é improvável que se permita que a morte de grande número de civis interfira na defesa da cidade. Em Leningrado, soldados não passaram fome, embora civis morressem de inanição. Por outro lado, civis foram evacuados de Leningrado, depois que o lago Lagoda ficou congelado, e o abastecimento foi retomado. Em circunstâncias diferentes, a livre saída poderia fazer uma diferença maior em termos militares, forçando uma investida frontal contra a cidade (porque o exército sitiante também poderia ter problemas de suprimentos) ou um grande prolongamento do cerco. Mas essas são conseqüências aceitáveis, e elas só são “prejudiciais” aos planos do comandante do cerco se seus planos não as contemplavam. Seja como for, se ele quiser (como é provável que queira) erguer as mãos para os céus e dizer dos civis que matar: “Não é minha responsabilidade”, ele não tem escolha a não ser oferecer-lhes a oportunidade de sair.


[9]Seguirei o relato de Leon Goure, The Siege of Leningrad(Standord, 1962).

[10] Goure, p. 141; Trials of War Criminals before the Nuremberg Military Tribunals (Washington, D. C.., 1950), XIm 563,

[11] A citação é de Hyde, International Law, III, 1802-03.

[12] Spaight, PP. 174 ss,

[13] Spaight, PP. 177-8.

[14] Hall, International Law, p. 398.

[15] The Code of Maimonides: Book Fourteen: The Book of Judges, tradução de Abraham M. Hershman (New Haven, 1949), p. 222; Grotius, Law of War and Peace, tomo III, capítulo XI, seção xiv, PP. 739-40.

[16] Veja Skrjabina, Siege and Survival, “Leningrad”.

12 março, 2010 às 22:30

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Categoria: Artigos

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