A ”verdade coletiva” de Lula (Roberto Romano)*

No episódio que abalou a imagem do presidente – o símile entre presos cubanos em greve de fome e bandidos – não sigo os revoltados pelas suas frases. Agradeço por ele usar uma verdade insofismável sobre a sua atitude mental. Desconfio dos que, na tentativa de manter aparências, dizem ter Luiz Inácio da Silva cometido um “escorregão”. Se falam de escândalo, talvez acertem. O termo “escândalo” vem do grego “skadzein”, cujo significado é “mancar”. Ninguém nega que o presidente tenha “mancado” ao perder o freio decoroso na língua. Ele, no entanto, abriu sua alma, exibindo diante do Brasil e do mundo a ideologia que de fato o move.

O público já testemunhou outras distrações do hoje presidente. Em histórica fala a um jornal paulista, ele proclamou que “a liberdade individual está subordinada à liberdade coletiva. Na medida em que você cria parâmetros aceitos pela coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não há razão para a defesa da liberdade individual. O que você precisa é criar mecanismos para que a grande maioria da comunidade possa participar das decisões” (Lula, 4/1/1986). E acrescentou: “A capacidade de você atender aos desejos individuais sem que isso prejudique os interesses coletivos é uma questão sobre a qual tenho dúvidas. Precisamos promover esta discussão dentro do PT.”

Segundo os debates partidários, amigos transformam-se em inimigos do coletivo ideado pelos petistas. “Você pode excluir o grande empresário, a multinacional, mas você precisa discutir se vai excluir o pequeno e médio proprietário do campo e da cidade.”

“Eu não quero”, disse o sindicalista, “ser o dono da verdade, o senhor da razão”. A tolice torna-se ameaçadora no complemento da frase: “Eu tenho uma verdade que está subordinada à verdade coletiva.” Treblinka, Auschwitz, o Gulag e Cuba resultam de tais “verdades coletivas”. Segundo aquela doutrina, um preso político cubano só pode ser bandido, pois vai contra a verdade, propriedade do Estado.

A exclusão dos inimigos (todos os que não se encontram no partido) se enraíza na cultura petista. Mas após derrotas acachapantes, aconselhado por especialistas em marketing político, Lula maquiou a fala dogmática. Chegaram as alianças eleitorais, a persuasão dirigida aos setores médios e, last but not least, o elo com setores da imprensa. Assustar o grande empresário, a multinacional, além do pequeno e médio proprietário do campo e da cidade, perceberam os petistas, era receita de fracasso. Surgia o esboço do “Lulinha paz e amor” e da Carta ao Povo Brasileiro. Líderes como Antônio Palocci ensaiaram privatizações “neoliberais” em seus domínios. O aço totalitário se cobria com o chantilly propagandístico. Era superada a era das pizzarias e padarias para o PT. Começava o tempo dos bons restaurantes, das garrafas de Romanée Conti. Oligarcas passaram a ser convidados de honra no convescote: Antonio Carlos Magalhães, José Sarney e outros receberam novos títulos, pois garantiam a governabilidade…

A encenação convenceu. Grandes empresas, multinacionais, pequenos e médios proprietários, boa parte da imprensa, todos azeitados pelos dividendos de uma política econômica antes execrada no petismo, aplaudiram o “novo PT”. Com as loas ao suposto bom senso, carisma e quejandos de Luiz Inácio da Silva, entoadas no Congresso pela oposição, veio o apoio às iniciativas governamentais na economia e adjacências. Quanto maior o sucesso entre os antigos inimigos, maior o cinismo dos petistas em relação a si mesmos. Discutir a divida externa, romper com o Fundo Monetário Internacional (FMI), controlar o capital estrangeiro? Bravatas. Política radical e socialista? “Nunca fui de esquerda”, asseverou o líder, aplaudido em delírio.

Passaram os dias e, arrogantes, seguros de manter o mando, os petistas começaram a soltar os demônios reprimidos. Já no episódio do “mensalão” sobraram raios e trovões contra a “imprensa burguesa”, os empresários, os promotores públicos. Mas o presidente foi à TV e pediu desculpas, dizendo não saber a causa de suas escusas. Agora confessa: sabia. Chegaram os aloprados, os projetos de mordaça na mídia, a defesa de Sarney a todo custo (inclusive ao preço da censura, como no caso deste jornal) e as unhas ideológicas apareceram, somadas aos caninos. Lenta e inexorável, ressurge a busca de uma hegemonia ditatorial mantida pelos escravos voluntários, os militantes. Estes tudo fazem para garantir o poder aos donos do partido. Quanto mais seguros de que ficarão no Planalto por mil anos, maior a grosseria dos ataques contra quem não dobra espinha e ouvido às ordens palacianas.

Os cosméticos tombam da face governamental. A lógica de Luiz Inácio da Silva é a mesma, desde 1986. Naquela época importava defender os direitos humanos (nunca incluídos os presos de Cuba) para manter a coesão interna do PT, no qual ombreavam stalinistas e católicos, trotskistas e adeptos da ecologia. Os religiosos defenderam os direitos humanos contra a ditadura, foram adversários das violações em todos os países e sob qualquer ideologia. Quem defende direitos não escolhe ideologia a ser protegida. Mas, com a chegada do PT ao poder, os católicos desembarcam do navio. Ficam os adeptos da razão cabocla de Estado.

A fala do presidente contra os presos cubanos, assimilando-os a bandidos, tem uma gênese mais ampla do que o PT. Ela se enraíza nas purgas nauseantes, como nos Processos de Moscou, em 1936. Ali não existiam dissidentes, mas terroristas. Só possui direito quem se abriga à sombra do partido. O resto é inimigo e… bandido.

Obrigado, Lula, por desvelar o que sempre esteve em seu íntimo. E por nos advertir sobre o que virá nos próximos dias.

 ( Publicado no Estadão em 20/03/2010)

* Roberto Romano é filósofo, professor de ética e filosofia na Unicamp, e autor, entre outros livros, de ” O Caldeirão de Medeia”

20 março, 2010 às 18:46

Tags:

Categoria: Artigos

Comentários (2)

 

  1. Alexia disse:

    Bom dia. Li hoje seu texto e concordo. Tenho me desanimado de votar devido à esta vergonha dos políticos, começando do presidente, depois senadores, deputados,… não votei no Lula e nem em nenhum senador, nem deputado e acho que vou anular votos novamente. Mas hoje tbém recebi esse e-mail(abaixo) de uma amiga, que achei interessante e resolvi repassar-lhe.

    “Deus reside em todos os homens, mas nem todos os homens estão Nele. Por isso eles sofrem.”

    Assunto: É obrigatório ler esta mensagem Tá reclamando de quê ?!

    ” Tá ” Reclamando do Lula? do Serra? da Dilma? do Arrruda? do Sarney? do Collor? Do Renan? do Palocci? do Delubio? Da Roseanne Sarney? Dos politicos distritais de Brasilia? do Jucá? do Kassab? dos mais 300 picaretas do Congresso? E você?
    Brasileiro Reclama De Quê?

    O Brasileiro é assim:

    1. – Saqueia cargas de veículos acidentados nas estradas.

    2. – Estaciona nas calçadas, muitas vezes debaixo de placas proibitivas.

    3. – Suborna ou tenta subornar quando é pego cometendo infração.

    4. – Troca voto por qualquer coisa: areia, cimento, tijolo, dentadura.

    5. – Fala no celular enquanto dirige.

    6. -Trafega pela direita nos acostamentos num congestionamento.

    7. – Para em filas duplas, triplas em frente às escolas.

    8. – Viola a lei do silêncio.

    9. – Dirige após consumir bebida alcoólica.

    10. – Fura filas nos bancos, utilizando-se das mais esfarrapadas desculpas.

    11. – Espalha mesas, churrasqueira nas calçadas.

    12. – Pega atestados médicos sem estar doente, só para faltar ao trabalho.

    13. – Faz ” gato ” de luz, de água e de tv a cabo.

    14. – Registra imóveis no cartório num valor abaixo do comprado, muitas vezes irrisórios, só para pagar menos impostos.

    15. – Compra recibo para abater na declaração do imposto de renda para pagar menos imposto.

    16. – Muda a cor da pele para ingressar na universidade através do sistema de cotas.

    17. – Quando viaja a serviço pela empresa, se o almoço custou 10 pede nota fiscal de 20.

    18. – Comercializa objetos doados nessas campanhas de catástrofes.

    19. – Estaciona em vagas exclusivas para deficientes.

    20. – Adultera o velocímetro do carro para vendê-lo como se fosse pouco rodado.

    21. – Compra produtos pirata com a plena consciência de que são pirata.

    22. – Substitui o catalisador do carro por um que só tem a casca.

    23. – Diminui a idade do filho para que este passe por baixo da roleta do ônibus, sem pagar passagem.

    24. – Emplaca o carro fora do seu domicílio para pagar menos IPVA.

    25. – Freqüenta os caça-níqueis e faz uma fezinha no jogo de bicho.

    26. – Leva das empresas onde trabalha, pequenos objetos como clipes, envelopes, canetas, lápis…. como se isso não fosse roubo.

    27. – Comercializa os vales-transporte e vales-refeição que recebe das empresas onde trabalha.

    28. – Falsifica tudo, tudo mesmo… só não falsifica aquilo que ainda não foi inventado.

    29. – Quando volta do exterior, nunca diz a verdade quando o fiscal aduaneiro pergunta o que traz na bagagem.

    30. – Quando encontra algum objeto perdido, na maioria das vezes não devolve.

    E quer que os políticos sejam honestos…

    Escandaliza- se com a farra das passagens aéreas…

    Esses políticos que aí estão saíram do meio desse mesmo povo ou não?
    Brasileiro reclama de quê, afinal?

    E é a mais pura verdade, isso que é o pior! Então sugiro adotarmos uma mudança de comportamento, começando por nós mesmos, onde for necessário!

    Vamos dar o bom exemplo!

    Espalhe essa idéia!

    “Fala-se tanto da necessidade deixar um planeta melhor para os nossos filhos e esquece-se da urgência de deixarmos filhos melhores
    (educados, honestos, dignos, éticos, responsáveis) para o nosso planeta, através dos nossos exemplos…”
    Amigos!

    É um dos e-mails mais verdadeiros que recebí!
    A mudança deve começar dentro de nós, nossas casas, nossos valores, nossas atitudes!

  2. César disse:

    Acho um desperdício de tempo discutir nesse modus operandi de ler jornal e ficar papeando como se fosse algo relevante. O único discurso que vale a pena ouvir é aquele sobre pessoas AJUDARAM à investir na educação.

    Investiu na educação? Não? Então você é igual aos outros de quem tanto fala mal.

    Desculpe a acidez, mas acontece que estou cansado desta baboseira que é a mentalidade brasileira.

Deixe seu comentário para Alexia

Deixe um comentário para Alexia Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

* Copy This Password *

* Type Or Paste Password Here *