Beethoven substitui qualquer religião (entrevista de Maria João Pires)

MJ_Beethoven

 

(a entrevista foi concedida ao reporter João Luiz Sampaio em Lauro de Freitas, na Bahia)

Em um quarto de sua casa, o “único com ar condicionado”, Maria João Pires mantém o piano e uma estante  de partituras. “Não gosto do clima artificial, mas aqui é necessário por conta do piano, que sofre demais com o calor”, ela explica. Na parede, um retrato autografado do pianista russo Sviatoslav Richter e fotos ao lado do maestro italiano Claudio Abbado e do violinista francês Augustin Dumay. “A vida do músico é feita de parcerias. Nós construímos algo juntos aos poucos e o diálogo é sempre fundamental.”

Abbado, com quem ela gravou concertos  de Mozart  e Schumann, é um amigo querido, “mas daqueles que nunca se veem”. “Raramente nos encontramos, não ligamos um para o outro. Mas, quando estamos juntos, é especial. O primeiro concerto foi há 25 anos, nos conhecemos  em Viena. E ele agora quer gravar um novo disco.” O repertório?  “Ele gostaria de fazer  outros  concertos de Mozart”, diz ela, dando a entender que tinha  outras ideias em mente. “Sim, é verdade, mas se ele prefere os concertos de Mozart, está ótimo para mim.É engraçado como com ele eu sinto que o melhor para mim é sempre aceitar suas sugestões”.

Ela encerrou o contrato com o selo Deutsche Grammophon porque deseja “ficar livre para gravar sem pressões”, embora em condições especiais, como a parceria com Abbado, aceite voltar ao estúdio. Apaixonada pela música brasileira – ” Minha juventude foi embalada pela bossa nova e cheguei a ver Vinicius ao vivo duas vezes” -, ela conta que alguns anos quis ralizar um sonho e gravar com Caetano Veloso e Maria Bethânia. ” Ele logo disse que não estava interessado. Ela até se interessou, mas depis o projeto não andou. Eles devem  ter alguma razão, mas claro que não iam dizer para mim”, lembra, divertindo-se.  Amanhã, vai interpretar Chopin. Ela ri quando ouve a declaração do colega Nelson Freire, para quem abandonar o piano seria difícil, pois o impediria de tocar a obra do compositor  polonês. “Ele tem razão, afinal, Chopin foi pianista e lida com o instrumento de maneira muito especial.” Sua obra, assim como a de Schumann, Mozart e Beethoven formam a base de seu repertório, desde o início da carreira. “Há um limite físico, minhas mãos são pequenas e portanto há uma enorme quantidade de peças que não posso tocar. Mas esse limite não me incomoda, até me agrada, pois me permite voltar sempre a um deles e redescobri-lo a todo instante.”

Entre esses compositores, porém, lugar especial está reservado a Beethoven. “Ele é fundamental para qualquer músico. E para qualquer pessoa. Foi um iluminado, um mensageiro que trouxe algo à humanidade, tocado por uma graça. Ele fala de tudo em suas obras, de disciplina, de desprendimento. O estudo de  Beethoven  substitui  qualquer  moral,  qualquer  religião. Não tenho necessidade de tocar Mozart,  posso  ficar anos  sem ele. Mas não me afasto nunca de Beethoven.” Ela gostaria de ter mais tempo para estudar algumas obras, como suaSonata  Op.  111.“Mas não dá. Para encarar uma peça assim, é preciso se afastar dos concertos, dos recitais. Seria bom poder tirar períodos sabáticos a cada cinco aanos, só para estudar, mas estou velha para isso, o melhor agora é me aposentar de vez”.

Sentada ao piano, Maria João define o trabalho do intérprete como a obrigação de “fazer chegar ao público um momento de comunhão com a música, com algo que pode ser Deus, o univer- so, um milagre, não importa  o nome que se dê”. Às vésperas de embarcar para São Paulo, ela pergunta, enquanto  é fotografada, sobre o litoral paulista e quer saber se ainda é possível ver trechos de Mata Atlântica nas proximidades da cidade. “Seria interessante, mas não sei se vai dar tempo.”  Com  as fotos  feitas, acompanha repórter e fotógrafo até a porta de casa. “Preciso servir o almoço das crianças, você entendem?”  À porta, recomenda: “A praia fica aqui do lado, vale a pena dar uma olhada.” E se despede com mais um sorriso.

Maria João Pires sobe amanhã  no palco da Sala São Paulo para homenagear o compositor Frederic Chopin, de quem se comemora em 2010 os 200 anos de nascimento. Ao seu lado, estará o violoncelista russo Pavel  Gomziakov. “Já se vão oito meses desde que tocamos juntos pela última vez, vamos aproveitar o fim de semana para estudar um pouco”, diz a pianista.

Os dois gravaram para o selo Deutsche Grammophon parte  do repertório da apresentação, que se inicia com o Estudo  nº 7 Op.25, em arranjo para violoncelo e piano feito por Glazunov; em seguida, eles tocam a Sonata nº 3 em Si Menor para violoncelo e piano, a Gôndola Fúnebre, de Liszt, também para violoncelo e piano e, encerrando a noite, a Sonata Op. 65 de Chopin. “É um compositor fascinante pela maneira como trata o piano”, diz Maria João. Parte da renda será revertida para a construção do novo Teatro Cultura Artística.

(Publicado no Estadão em 4 de abril de 2010)

Observações do blog : interessante esse fascínio por Caetano e Bethânia. Os dois provavelmente nunca gastaram muito de seu tempo ouvindo Beethoven, ou Schubert. Outra coisa: com suas mãos pequenas Maria João Pires não pode interpretar Rachmaninoff, que por ter mãos imensas compôs peças inacessiveis para muitos pianistas.

Duas interpretações do Impromptus número 3, Op. 90 ,de Schubert, uma das maiores obras românticas de todos os tempos . (Eu prefiro o Alfred Brendel)

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6 abril, 2010 às 00:20

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Categoria: Artigos

Comentários (1)

 

  1. Concordo integralmente com Maria João Pires quando fala de Beethoven: “…Ele é fundamental para qualquer músico. E para qualquer pessoa. Foi um iluminado, um mensageiro que trouxe algo à humanidade, tocado por uma graça. Ele fala de tudo em suas obras, de disciplina, de desprendimento. O estudo de Beethoven substitui qualquer moral, qualquer religião. Não tenho necessidade de tocar Mozart, posso ficar anos sem ele. Mas não me afasto nunca de Beethoven.”

    Doce verdade esta aí. Eu também sou uma apaixonada por ele. Quase pude ouvir Maria João interpretar Beethoven no Palácio das Artes em primeiro de abril próximo passado; infelizmente, por motivos de saúde ela não pode comparecer e foi substituída por Ricardo Castro que não deixou de merecer muitos aplausos, esplendidamente interpretou o Concerto para piano nº4 em sol maior, op. 58 de Beethoven, por momentos me transportei para um mundo que era só beleza, harmonia e encantamento. Foi fantástico.

    Bom artigo este seu da música, os dois vídeos foram muito agradáveis de ouvir. Parabéns. Beijins, Michèle

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