Minha viagem ao Afeganistão

Todos estão muito atentos porque o presidente Obama vai discursar sobre sua política externa. Começa pelo capítulo Afeganistão. Faz uma cara seríssima, quando diz que é necessário enviar  mais tropas. E vai combater o ópio, e vai combater a corrupção, e também são inadmissiveis os santuários dos talebans dentro do Paquistão. É necessário conversar com o governo paquistanês, é necessário conversar com as diversas etnias afegans, é necessário que a médio e longo prazo o Afeganistão consiga se auto-governar sem as tropas americanas dentro do seu território. O pano de fundo é sempre o “diálogo”, sua grande descoberta. Antes de Obama ninguém havia ouvido essa palavra. E ele é um orador brilhante. Faz as pausas nas horas certíssimas, sua voz é ótima, sua presença perfeita, ele inspira confiança.

Até outro dia, só fazia repetir a política externa de Bush, mas, por fim, mostrou para o que veio, e começou a fazer discursos de mea culpa pelo mundo afora. Perdeu a noção do ridículo quando bajulou os muçulmanos, cometendo o disparate de dizer que o problema de afirmação da mulher americana não estava resolvido. Uma tentativa canhestra de  alinhar as barbaridades contra as muçulmanas e, digamos, piadas sobre as louras nos Estados Unidos.  Agora chegou ao máximo quando resolveu atormentar a pobre Honduras, no mais perfeito estilo dos “americans liberals”. Ficou do lado errado, assanhou toda a esquerda mundial, e está estrangulando o país que tentou se livrar de um golpe de estado que o levaria para o chavismo. Ah, seu heroi  deve ser, sem dúvida, o patético Jimmy Carter.  Mas, durante algum tempo, no Iraque e no Afeganistão, repetiu tudo que o ex-presidente cansou de dizer. A maneira como apresenta suas “changes” é magistral.  Bush, a figura importante mais  condenada na história contemporânea desde Hitler, deve ter ficado  impressionado vendo seu sucessor dizer as mesmas coisas que ele disse e, no outro dia, receber um dilúvio de aplausos, ao invés dos editoriais furiosos do NYTimes, Los Angeles Times, Washington Post, e CNN.  Afinal, essa fase passou, e Obama está mostrando sua verdadeira face.  Não há mais motivo para confusão, ou esperanças.

Abaixo está a reportagem que fiz para o Estadão quando de minha viagem ao Afeganistão em 2005

Afeganistão

CLIMA DE GUERRA PAIRA SOBRE CABUL

Após a queda do Taleban, capital afegã continua devastada e sob ocupação de forças militares estrangeiras

Cláudio Mafra
Especial para o Estado

Cabul

O Hotel Intercontinental, em Cabul, no Afeganistão, tem na porta de entrada uma placa parecida com as de trânsito. Eles desenharam um fuzil russo AK-47 dentro de uma bola vermelha e cruzaram uma faixa branca por cima. Está escrito “No Weapons”, ou seja, proibido entrar com armas. Faz muito sentido, já que o próprio irmão do presidente Hamid Karzai disse que cada família afegã tem pelo menos um fuzil Kalashnikov e algumas pistolas: “Os afegãos sempre têm armas em casa, é parte da nossa cultura.” Existem pelo menos 10 milhões de pistolas, revólveres, metralhadores e fuzis em circulação. Para uma população por volta de 25 milhões de habitantes, dá a média de uma arma para cada 2 ou 3 habitantes.

Após passar por duas barreiras policiais, o taxi estaciona a 20 metros de distância e um porteiro faz sinal para permitir a aproximação. Parar tão longe é precaução contra os carros-bomba. Em 2001 houve um atentado perto do hotel, mas a explosão causou danos apenas no restaurante e nas janelas da frente. Quase todos os inúmeros organismos internacionais que operam em Cabul têm seu pessoal hospedado permanentemente no Intercontinental. É o melhor da cidade, o que não quer dizer muita coisa, já que depois dele só mais dois outros lugares podem ser chamados de decentes. Apesar da dificuldade, é possível conseguir por US$ 110 um apartamento com uma linda vista para as montanhas nevadas que cercam a cidade.

“Vocês, da imprensa, foram embora pensando que tudo tinha terminado. Foram pra Bagdá e não sabem que a guerra aqui continua”.

Cabul é uma cidade caótica de 2 milhões de habitantes. Poeirenta, cheia de esqueletos de edifícios bombardeados, entupida de carros, um comércio desorganizado, muita gente nas ruas, muita gente vendendo produtos ocidentais espalhados no chão, pessoas que olham para você com desconfiança.

É bom não tirar fotos das famosas mulheres com as burcas azuis porque ninguém gosta, é desrespeito, e os homens barbudos, altos, com suas longas túnicas que chegam até o chão, estão vigilantes. Fui aconselhado por meu guia a esperar quando estivermos flora da cidade, no campo, ao longo das estradas.

O capitão da Força Aérea russa disse que não gosta de conversar em frente de outras pessoas no saguão do hotel, e vamos para seu apartamento. Ele está em Cabul treinando equipes de reparo e manutenção da imensa quantidade de armas que o Exército da ex-União Soviética deixou na sua retirada e hoje estão em poder do governo. A contribuição russa ao esforço internacional para a reconstrução do país é colocar essas armas em forma para uso do novíssimo Exército afegão.

O capitão russo diz, com grande satisfação, que os EUA não controlam todo o país: “Apenas as grandes cidades, e por estes dias mesmo perderam 13 helicópteros abatidos nas montanhas. Treze helicópteros!” É difícil e humilhante para os russos aceitarem o fato de que os EUA expulsaram os taleban para as altas montanhas e fronteiras do país, e de alguma forma ganharam a guerra. A mesma guerra que eles perderam.

O Afeganistão é para os russos o que é o Vietnã para os americanos. Ele vai em frente: “Os EUA fizeram essa guerra porque este país é muito rico em recursos minerais. Aqui é por causa do minério, lá no Iraque é o petróleo. Vocês, da imprensa, foram embora porque pensaram que tudo havia terminado. Foram para Bagdá e não sabem que a guerra continua.” Ele mal consegue disfarçar que torce pelos taleban. Se pudesse, prepararia as armas para estourar na cara de quem usasse.

Um país arrasado por lutas e intervenções

O Afeganistão é um país atormentado pelas lutas entre suas diversas etnias. Mas sua história nos últimos anos está mais relacionada com intervenções externas. Em abril de 1978, com o apoio dos russos, o Partido Comunista afegão deu um golpe de Estado. Assumiu um governo que, além das brutalidades praticadas em nome de reformas estruturais, ultrajou a população ao oferecer orações públicas para as almas de Marx e Lênin. Em dezembro de 1979, a União Soviética invadiu o país para sustentar o governo títere. O que parecia fácil se mostrou dificílimo. A guerra santa foi declarada e muçulmanos de todo o mundo dirigiram-se ao país para expulsar os invasores. Ao mesmo tempo, os paquistaneses, com ajuda da CIA, armavam os afegãos. Foram necessários dez anos para que os russos reconhecessem a derrota humilhante e se retirassem. A invasão deixou 1 milhão de afegãos mortos e 7 milhões de refugiados. O governo títere ainda durou três anos até a renúncia do presidente, em 1992. A partir dessa data, houve um período de guerra civil com a participação discreta de americanos, paquistaneses, iranianos e sauditas. Então, em 1996, chegaram os taleban e desarmaram as facções em luta. O antigo presidente comunista, Najibullah, foi arrancado de seu refúgio nas dependências da ONU, castrado, arrastado por um jipe pela cidade, baleado na cabeça e dependurado pelo pescoço em praça pública. A primeira ordem dada pelo rádio foi a de que os homens não poderiam mais raspar a barba e teriam de ir à mesquita, ou orar cinco vezes por dia. Ao povo foi imposto um fanatismo religioso que espantou o mundo, ao mesmo tempo em que o regime acolhia terroristas, entre eles Osama Bin Laden. Em 2001, o Afeganistão foi invadido pelos EUA e aliados que depuseram o governo do Taleban. Hamid Karzai foi eleito presidente. Hoje, existem no Afeganistão tropas de vários países sob o comando da Otan, além de forças dos EUA. E os taleban continuam resistindo nas montanhas.• C.M.

Meu guia chama-se Nasin Baig, um rapaz de 18 anos que é gerente de uma lojinha no saguão do hotel. Durante o regime taleban ele foi proibido de estudar, e o rádio e a televisão foram banidos de sua vida. Jogou fora suas roupas e passou a usar a moda obrigatória, a mesma túnica dos taleban. Rezava o dia inteiro. Agora ela acha difícil reiniciar os estudos porque já está trabalhando, existem contas a pagar e o entusiasmo foi embora. É claro que Nasin odeia os taleban. Também odeia os russos e já mostrou que também vai odiar os americanos. Seu único entusiasmo verdadeiro é pelo grande herói afegão, Ahmed Massud, que foi o comandante da Aliança do Norte, uma coalizão que lutou contra os russos e os taleban. O retrato de Massud está em todos os lugares. Taleban disfarçados de jornalistas o mataram dias antes dos atentados de 11 de setembro de 2001.

Estamos andando por uma rua no centro da cidade e Nasin conta que naquele exato lugar, durante o ataque americano a Cabul, ele viu um carro de combate passando em alta velocidade cheio de taleban armados. Logo depois houve uma tremenda explosão e o carro sumiu. O que o impressionou foi que o foguete, lançado de um avião, só atingiu o carro. Os prédios em volta, entre eles uma mesquita, ficaram intactos.

Um dos programas dos oficiais americanos é sair à noite da sua base ultra protegida para tomar cerveja e uísque no bar do hotel. Do lado de fora, ao lado de três jipes Hummer e um caminhão, estão os soldados e o sargento que vieram com eles. Estão parados no frio e no escuro, esperando seus superiores deixarem o bar. Digo um boa noite e sou muito bem recebido. Apertamos as mãos, estão satisfeitos por terem alguém diferente para conversar, principalmente o exótico brasileiro, que vive no paraíso de calor, praias, mulatas e carnaval. Vou logo perguntando se os taleban são bons de briga. O consenso foi de são “mais ou menos” porque “a gente quase não chega a vê-los, as batalhas são de longe, nas montanhas.” O sargento é mais objetivo: “Nos explosivos, eles são bons como o diabo.” Todos concordam. Outro soldado fala dos perigos da guerra: “Aqui, em Cabul, até que não tem problema, mas no leste e no sul, nas fronteiras do Paquistão, é barra pesada.” Um terceiro soldado entra na conversa: “No Iraque é pior.” Risada geral. E como são recebidos pelo povo? “Alguns gostam da gente, outros não. Os meninos gostam.” Conversamos bastante, proponho trazer uma garrafa de uísque Jack Daniels que está no meu quarto. Eles recusam; “Nem pensar, e os oficiais?”

Andando pelo saguão do hotel encontro o ator Ben Kingsley que trabalhou em Gandhi, A Lista de Schindler e outros bons filmes. Ele veio fazer um curta-metragem sobre as crianças do Afeganistão. O plano é vendê-lo em cidades americanas e européias. O dinheiro arrecadado será doado para a ONG Save The Children. Está impaciente para ir embora. Como todo mundo, sente um pouco de medo. Tudo pronto, já pode partir, um membro da sua equipe lhe entrega um monte de notas de US$ 20 que ele vai distribuindo para os empregados do hotel. Trocamos um aperto de mão e nos despedimos. Boa sorte, Ben. •

Mais informações no Caderno Cultura

Na estrada para o norte, o pesadelo do Túnel Salang

Pode-se imaginar afegãos, nos altos penhascos, abatendo russos como patos

Cabul

A estrada que liga Cabul à cidade de Mazer-i-Sharif é a vitrine da desgraça russa. Dos dois lados a visão é de tanques, canhões e carros de combate atingidos por foguetes. Hoje, queimados e enferrujados, são objeto de brinquedo para os meninos. Pode-se imaginar os afegãos, nos altos penhascos que seguem a estrada, abatendo os russos como patos.

O percurso é muito bonito, e vai-se subindo por entre as montanhas cobertas de neves eternas até um trecho que está apinhado de caminhões e carros. Todos estão esperando para entrar em um túnel realmente inacreditável, o famoso Salang Tunel, construído a 3.400 metros de altitude, até algum tempo atrás o mais alto do mundo.

O Salang foi bloqueado pelo senhor da guerra Massud durante muitos anos, desesperado para negar aos taleban acesso ao norte do país. Entrar nesse túnel é uma experiência e tanto. Os turistas são aconselhados a não tentar. O livro-guia diz: “Não é uma experiência para medrosos.” Estou em minha segunda tentativa, já que no dia anterior o motorista de taxi, depois de tudo acertado em Cabul, recusou-se a entrar no túnel, mesmo com a minha oferta de pagá-lo em dobro. Pensava em voltar com um Nissan 4×4, mas estou mesmo em uma perua pequena e velha.

Circulei por entre os outros veículos e verifiquei que o pior carro era o meu. Bati na janela de um Hummer dos fuzileiros americanos. Uma tenente bonita baixou o vidro elétrico e eu pateticamente perguntei o que ela achava da minha intenção de entrar no túnel com aquela perua ridícula. A sua resposta — “Não faço a menor idéia” — não ajudou nada.

Meu motorista, um menino de 17 anos, assustado e quieto, ficou observando. Perguntei se estava seguro do que íamos fazer. Acrescentei que poderíamos voltar para Cabul e que o pagaria da mesma forma. Ele já havia entrado no túnel? Em uma sociedade de machões, a resposta não poderia ser outra: sim, ele estava muito seguro, já havia entrado no túnel junto com o pai. Então fiz a pergunta definitiva: e se o carro quebrar lá dentro? “Não, o carro é bom, não vai quebrar.” Bem, nas últimas quatro horas o carro já havia parado três vezes, fervendo no meio da estrada.

Quando chegou nossa vez vi que o túnel era tudo que falavam e mais alguma coisa. Negra escuridão, caminhões gemendo sob o peso da sua carga derrapam no gelo indo de um lado para o outro, grunhindo à frente e lançando fumaça tão grossa que gruda no corpo como se fosse uma pasta. Não existe nenhum exaustor. Você segue devagar naquele inferno, sem enxergar nada — a não ser as sombras dos caminhões — e vai patinando, quase batendo nas paredes, caindo nos buracos de água gelada, respirando veneno puro, desesperado para que os 3.500 metros acabem logo.

E o carro quebrou. Ficamos 20 minutos parados, tontos com tanta fumaça, esperando algum caminhão nos arrebentar por trás, até que o menino conseguiu o impossível e chegamos do outro lado. Depois de tanto tempo no túnel, a luz das montanhas nevadas doem nos olhos. O panorama é deslumbrante, você procura respirar profundamente e recuperar a compostura. Depois é preciso tomar cuidado para, na euforia, não sair caminhando fora do acostamento, onde estão as minas. O Afeganistão, depois do Camboja, e da “terra de ninguém” entre as duas Coréias, é o lugar mais minado do mundo.

“Ficamos 20 minutos parados dentro do túnel, tontos com tanta fumaça, esperando algum caminhão nos arrebentar por trás”.

 Para voltar esperamos horas, até termos certeza de que o carro poderia atravessar o túnel rapidamente. Nos primeiros momentos — pensando nos seus pulmões — você se arrepende, mas no outro dia acha que fez muito bem. Afinal, atravessar o Salang é um privilégio. • C.M.

Fotos: Claudio Mafra. Reprodução permitida mediante citação dos créditos
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Kabul

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7 julho, 2009 às 00:15

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Categoria: Artigos

Comentários (2)

 

  1. vanessa disse:

    oi fui passear em kabul ano passado, achei as pessoas muito carinhosas porem cenario de guerra !!

    • claudiomafra disse:

      Ótimo, vc deve ser bonita, não carregava uma câmera profissional e não tinha um segurança ao seu lado. Acertei ?

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