Minha viagem ao Iran

O reporter desembarca na capital do Iran, Tehran, sem ter o visto para entrar no país. Está jogando com a sorte, porque a informação de que tudo poderia ser arranjado no aeroporto não é confiavel. Seu maior receio é que descubram que ele tem um blog onde frequentemente diz não entender porque as usinas atômicas iranianas ainda não foram bombardeadas, zomba dos aitolás, e comete o maior dos crimes: publica cartoons sobre Maomé. Este país, cujo regime é condenado por quase todo o mundo, está em permanente estado de alerta, enxerga espiões em toda parte, prende gente inocente, e o reporter sabe que esse é o último lugar que deveria visitar. Se o investigam qual sua defesa para as ofensas diárias ? Sem dúvida ele é culpado. O que está fazendo aqui ? Se detesta o regime islâmico porque veio para Tehran ? É um espião da CIA? O melhor que poderia lhe acontecer seria considerarem a sua viagem um desaforo. E tem mais: ele está chegando da Síria, um aliado iraniano, onde entrou disfarçado de turista, por mais estranho que possa ser um turista visitando um país em guerra civil.

No aeroporto fui tratado com uma grosseria que nunca vi em lugar nenhum. Ordenam que eu siga de uma sala para outra e minha tensão aumenta porque não sei se estão procurando meu nome na internet. Finalmente me comunicam que vou receber o visto. Troquei dólares, e o sujeito parece que gosta de me encarar como seu fosse alguma coisa detestável. Quanto mais humilde pior é a resposta que recebo. A relação entre o dolar e a moeda local, o ryal, é de 1 para 10.000. Pela nota de 100 dólares recebi 1 milhão de ryals. O chofer do taxi também é extremamente hostil, que coisa mais esquisita, a impressão é a de que todos odeiam os estrangeiros, ou será que se limitam aos ocidentais ? O carro é veloz, mas o aeroporto (Khomeini), provavelmente em virtude de algum problema militar, é o mais distante que já vi. A viagem não acaba nunca. Quando finalmente entramos em Tehran o drama continua porque a cidade é gigantesca. Chegar ao hotel parece impossivel. Londres pode ser enorme, mas existem edificios baixinhos, casas, e aqui são só prédios de 10, 12 andares, e já que a gasolina é baratíssima o trânsito torna-se infernal, com  motocas muito mais atrevidas do que as do Brasil.
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Quando chego ao Hotel Homa  pago os baratíssimos 250 mil ryals (25 dólares) combinados no aeroporto, nem olho para a cara do taxista, percebo que pelas minhas costas o homem reclama porque não foi dada gorjeta, mas o porteiro uniformizado, a primeira pessoal gentil que encontro, logo pega as malas e o taxista fica falando sozinho. Na recepção não acham a minha reserva, dizem que os quartos mais baratos estão lotados e me empurram para outro, de 210 dólares por noite. A encenação de ser um turista começa: eu reclamo da agência da África do Sul que não havia dito que as cidades de Isfahan, Shiraz, Persépolis, as mais visitadas, belos sítios arqueológicos, são tão longe da capital. É pura verdade. Os turistas viajam de outros países diretamente para esses lugares, deixando Tehran de lado. Já que estou cansado da viagem à Síria, cansado de entrar e sair de aeroportos resolvo ficar apenas na cidade, ao contrário do que fiz em Damasco. 

Não devo chamar muito a atenção, e para isso o que estou vestindo não ajuda.  O pior é o tenis branco. Por um momento pensei em comprar sapatos e roupas menos ocidentalizadas mas logo desisto porque parece covardia.

O quarto do hotel é luxuoso e o tratamento muitíssimo correto. A chave eletrônica é toda escrita em persa e em inglês e leva a marca da Samsung. As grosserias do aeroporto ficaram para trás

Uma surpresa: quando pergunto (apenas por perguntar) se o hotel aceita cartões de crédito a resposta é afirmativa! O que ? Maravilha, mas o recepcionista adverte que apenas na parte da manhã os cartões funcionam. Fico cada vez mais curioso. Com todas as sanções ainda existem os cartões ? E por que só de manhã ? Então eu me lembro de haver visto na TV, em meu quarto em Damasco, uma entrevista com o presidente da Google, que todo sorridente disse que os iranianos têm um incrivel natural talento para a cibernética e que são verdadeiros hackers. Será que tem a ver com os cartões de crédito? Quanto a haver retirado o meu blog da internet por 5 dias a ineficácia da medida fica ainda mais clara.

A matéria sobre a Síria ainda não seguiu para o jornal e isso se torna outro problema. Estou farto de me deslocar de um lado para o outro e a internet do hotel está tão a mão! Mas ninguém é bobo, o lugar deve ser um dos mais vigiados na cidade, talvez a internet também, mas não há o que fazer: é confiar em que os iranianos têm coisas mais importantes para cuidar, e afinal o papel de imbecil que fiz na recepção  ( um verdadeiro ator) pode ter sido meu passaporte definitivo para a impunidade. Uso alguns truques para disfarçar o tempo que levo escrevendo. Quando peço ao rapaz da internet para imprimir, vem a pergunta:“Imprimir o seu trabalho ?”  “O que ? Não, não é trabalho, é um relato de viagem para minha ex- mulher que mora na África do Sul”. E além de apagar o que já mandei para o jornal, ainda envio o texto para a cidade do Cabo. Hoje tudo parece um tanto excessivo, mas sei que corri riscos, e não vou deixar que o tempo transforme a realidade passada.

Tehran é tão grande, 15 milhões de habitantes, que percebi imediatamente que estava simplificando o problema do bombardeio das usinas nucleares. Entrar em guerra com esse país é muito mais complicado do que eu imaginava. A ação americana ou israelense precisa ser extremamente localizada, os efeitos colaterais muito bem equacionados e a reação popular deve ser gigantesca. Tehran não é Bagdad, e menos ainda Kabul, que parece uma favela. É muito mais desenvolvida, e em inúmeros pontos ainda guarda semelhança com o Ocidente, que vem dos tempos do Xá, derrubado em 1979 pela revolução islâmica. O que eu sinto é que uma maioria, principamente de jovens, está dominada por uma minoria ínfima, os aitolás. Geralmente uma ditadura procura se perpetuar apenas para usufruir do poder, mas aqui trata-se de algo diferente: Os ditadores possuem uma ideologia profunda, e querem modificar toda a maneira de pensar dos iranianos. A diferença entre o que deseja o povo, e o que planejam os seus dirigentes, só encontra paralelo na antiga União Soviética, e seus satélites. Talvez seja ainda maior porque o cinismo ainda não chegou aos aiatolás. Eles realmente acreditam que o país, e o mundo, precisam ser governados segundo o Alcorão. É o marxismo exponenciado por ser algo que vem de Deus, que eles representam na terra
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Esta não é uma sociedade para apedrejar mulheres até a morte, cortar as mãos de ladrões e outras barbaridades. É óbvio que se trata única e simplesmente das leis impostas por uma república islâmica, da mesma maneira que os talebans no Afeganistão. Quando estive naquele país, um lugar extremamente religioso, atrasado e pobre, pude ver que o regime ditado pela Sharia foi odiado pelos afegãos. A expulsão dos talebans trouxe enorme alívio para todos. Muitas mulheres usam a marca registrada do lugar, a horrivel burka, mas os afegãos não querem que os mulás lhes imponham um modo de vida. Então, os iranianos, esses homens, essas moças, algumas muito bem vestidas, que circulam por Tehran poderiam ser perfeitamente de outro país. Nada em suas feições, em sua maneira de conversar, em seu comportamento, nem de longe sugere que possam apoiar o anacronismo cruel que tornou o Iran famoso. Os retratos dos aitolás estão por toda a parte, mas eu esperava ver mais expressões da ditadura pelas ruas da cidade. Não existem soldados, e em muitos lugares, principalmente nas lojas, fui tratado com naturalidade.

As mulheres são muito mais vestidas do que na Síria, ou Iraque, e existem em grande quantidade aquelas que andam em bandos, cobertas de preto da cabeça aos pés.Geralmente são as mais velhas, as vovós. A impressão é horrivel, parecem a Morte. Mas também existem as bonitinhas, as moderninhas, algumas lindas, mas, nem pensar em olhar para trás quando elas passam. Quando peguei um taxi para voltar ao hotel a viagem foi ótima, divertida, por causa dos tremendos finos que os carros tiram uns dos outros e das motos. O rapaz ao volante ria muito, iniciou-se um diálogo com mímica e poucas palavras em inglês. Acontece que ele logo fechou a cara quando apontei para três lindas mulheres e disse beautiful! O limite estabeleceu-se. Vamos brincar, mas nada de olhar para as mulheres dos outros. Esse trajeto do Museu Nacional até o hotel levou 35 minutos e custou 5 dólares. O melhor de tudo foi ver o rapaz bater numa moto, um grande divertimento para o turista que não conseguia acreditar que fosse possivel chegar ao Homa sem um acidente. O simpático motorista recebeu 2 dólares de gorjeta, na própria moeda americana. Em Tehran não existe problema em se usar o dolar.

No shopping do Museu Nacional, vendendo réplicas de peças famosas, duas mocinhas fizeram várias perguntas, riram muito e foram extremamente femininas. Um dos bons exemplos de que o recato islâmico – sem dúvida mais forte no Iran – continua muito longe do que desejam os barbudos que tomaram conta do país. O que parece ser uma regra absoluta, ao contrário da Síria, é todas cobrirem as cabeças. Quando pensei ter visto uma exceção, uma mulher bonita, vestido colado no corpo, e cheguei mais perto, descobri que usava o lenço de maneira diferente, mas ele estava lá.

No aeroporto a bagunça na chamada para embarque foi o meu ponto de contato com uma iraniana. Em poucos minutos ela estava falando mal do regime Começou dizendo que unicamente no Iran a classe econômica é chamada para embarcar antes da business, e terminou dizendo que seu presidente é totalmente maluco. Criticou a falta de liberdade, sente-se sufocada pelas regras islâmicas e assim por diante. Disse ter inveja do reporter por morar em um país ensolarado e democrático. Seu avião tinha o destino de Doha, no Qathar, de onde ela iria para a Arábia Saudita, enquanto o meu seguiria para Joburgo e depois para a lindíssima cidade do Cabo.

23 janeiro, 2012 às 14:54

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Categoria: Artigos

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