Mulheres

Pesadelo

Quando ela começou a gritar e alternar vozes graves e agudas com sussurros carregados de ódio foi que percebi a extensão da sua loucura. Sentei na cama e fiquei olhando. Todo controle havia desaparecido. Ela entrava e saía do quarto gesticulando extraordinariamente. Dava a impressão de que havia ficado menor, enquanto saltitava com os dedos em riste. Lembrava um gnomo, embora fosse muito magra. Estava assustadora. Dizia coisas terríveis. Prestei mais atenção quando começou a falar em sexo. Parece que eu não a estava satisfazendo. Fiquei furioso e comecei a gritar também. Por trás de tudo, como uma sombra viva e sinistra, eu podia sentir a presença do seu pai, o presidente da república. Ficamos lá. Nós três.

Um Homem Duro e Mau

Estou na estrada dirigindo em alta velocidade e ela conta a história da sua vida. A maneira como a internaram. Abriu a porta do apartamento e foi agarrada por uns caras que lhe aplicaram a injeção. Acordou em São Paulo e depois na Suíça. O pai, a mãe, o marido, duas de suas três filhas e os genros assinaram um documento afirmando que ela estava louca. Que havia tentado se suicidar cortando os pulsos. (Estende os braços e me pergunta se estou vendo algum sinal). O seu pai articulara tudo, comprando a família com promessas de carros e apartamentos. Precisavam desmoralizá-la porque dias antes revelara aos jornais que ele roubava. Detalhes sórdidos. Ela sempre pergunta “Você consegue entender, hein”? Faz isso tantas vezes que paro de responder. Só digo “hum, hum”.

Quando fala sobre o pai eu fico ligado. Ela diz que o odeia. Na sua festa de dezesseis anos ele aparecera bêbado, completamente nu, na frente de suas amigas. Houve um dia em que ameaçou estuprá-la. Pergunto como é sua mãe. “Vive colecionando coisas. Não vale nada, uma escrava de meu pai”.

Quando eles estavam no México, durante o intervalo entre sua grande vitória e sua posse, o presidente saiu para um passeio. Muitas horas depois telefonou para ela. Só deu o endereço de onde estava. Era um quarto imundo. As prostitutas haviam roubado tudo o que ele trazia. Ela saiu e comprou roupas e sapatos para que ele pudesse voltar para o hotel. O ódio e o fascínio por ele dominam a sua vida. Eu já a vi chorar, gritar e se contorcer, agarrada a uma porta, às três horas da manhã, se lamentando por ser sua filha. Uma cena patética, principalmente porque ela representava. Muito impressionante, pois eram dele os gestos nervosos e a maneira tresloucada de olhar. Alguma coisa demoníaca. Mais tarde eu descobriria que eles são iguais em tudo na vida.

Cento e quarenta quilômetros por hora e eu piso mais fundo. Ela não liga a mínima. Imagino que sempre foi corajosa. Agora está me dizendo que a última eleição para a prefeitura foi uma fraude. Assistiu a conversa em que tudo ficou combinado. Fala e vira-se para mim para ver se estou acreditando. Fico impassível. Olho diretamente para frente. Ela continua e diz que o computador foi arrumado para que o pai vencesse. Quando isso ficou decidido ele parou imediatamente com qualquer atividade política. Só bebia e descansava. Esperando o dia das eleições. Eu pergunto se ela contou o caso para o senador que foi enganado e que hoje é do seu partido e seu amigo. “Sim contei”. “E a reação dele”? “Não falou nada, somente riu”.

Não sei dizer se foi nessa eleição para prefeito, ou na anterior, para governador, que ele levou um tiro do seu caseiro em Guarujá. Havia se metido com a mulher do cara. A bala raspou a testa e ela cuidou de seu ferimento e de tudo, para que a imprensa não descobrisse. (Então novamente eu a vejo com ele). Sim, ali está o grande homem, um mito para milhões de pessoas. Velho, com a cabeça abaixada, sentado em sua poltrona. Mudo, confuso e humilhado. Ajoelhada ela passa levemente, carinhosamente, o algodão em sua fronte machucada. Teria sido assim? Ou os dois incansáveis, numa cena de ódio, aos gritos loucos, com censuras e ameaças terríveis?

Estou muito cansado. Mudo de posição. Seguro o volante com mais força, com os braços esticados. Respiro fundo e me distraio com os detalhes na paisagem. Procuro pelos meus velhos sonhos. Posso ficar chapado numa viagem longa de carro. Ela percebeu e está me trazendo de volta com sua voz estridente. Vai contando de que maneira poderemos comprar uma fazenda. Várias vezes me disse que será riquíssima quando o pai morrer. Deseja ardentemente que morra. Repete sempre, cantarolando de uma maneira irritante, que “ele não é eterno”. Mesmo agora, se ela quisesse, poderia entrar em acordo sobre uma das contas dele no exterior. Quinze milhões de dólares. “Sem a minha assinatura ele não pode retirar um cent”. E o que vem agora? Ele brigou com uma das empregadas e a despediu. Mais tarde deu ordens para que achassem a mulher e lhe dessem uma surra. “Bater na empregada”. Ela faz uma longa pausa. “Você acredita nisso, hein”? Acreditar. Mesmo antes de conhecê-la eu já tinha certeza de que a vida dele é uma grande farsa, um imenso esforço para esconder o seu desequilíbrio psíquico e moral. Somente os mais próximos conheceriam toda a verdade. Os outros falariam sobre alguma instabilidade emocional e mais tarde sobre o seu alcoolismo. Os fanáticos continuariam marchando ao seu lado, desculpando tudo o que fizesse por maior que fosse o seu desatino. Dentro dele, desde o início, a luta entre a sanidade, esperta e imoral, e a loucura. A loucura ganhou muitas vezes, mas não o suficiente para derrotá-lo. Um homem duro e mau.

“Você acredita nisso”? O que eu posso dizer? Pergunto por que ela não escreve um livro contando tudo o que sabe. Contando sobre a famosa renúncia. “Agora não. Só depois que ele morrer”. Ela olha para mim, mas o que digo nunca é o que ela quer ouvir. Insiste em que eu participe de sua vida. Insiste em que estamos casados. Continua fazendo planos para nosso futuro. O carro desliza velozmente. Ela parou de falar, mas a tensão não a abandona nunca. Sei que a sua luta é a mesma do seu pai. Afasto pensamentos demolidores. Pensamentos sobre a minha própria insensatez. A nau dos insensatos. Concentro-me na estrada e ultrapasso um grande caminhão aonde está escrito “COMPRIMENTO 22 METROS”.

Brasília, setembro/89

Ana

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De pé no vagão do metrô. Blazer azul-marinho, camisa branca, calça cinza e sapatos pretos. Assustado com minha própria audácia de estar aqui. Olho em volta. É uma paisagem de subúrbio. Estou nervoso. Minha mão procura os dólares no bolso da calça. Presto atenção nos sinais para não errar onde descer. Meus pensamentos estão amarrados no seguinte: viajei sem ninguém saber, ela é casada, e não está me esperando.

Desço do trem e subo as escadas rolantes. Recordações de outros metrôs. Carrego uma valise verde que me acompanha por muitos anos de pequenas aventuras. Parece que tem vida própria. Vou ficando elétrico. Quando chego ao hotel meu coração está aos pulos. Faço perguntas para a mulher da portaria e o seu sorriso é malicioso, e a voz conspiratória. Fico sem jeito com a sua cumplicidade desastrada : – “Claro que ela está hospedada aqui; saiu de manhã, mas volta às sete horas; vai ficar muito contente de ver o senhor. É o marido dela, não”? Mostra um quarto espremido debaixo de uma escada, mas eu não me importo, jogo a valise em cima da cama, tiro o paletó e espero que a sacana se mande. Há um zumbido na rua, eu puxo a cortina um pouquinho e vejo os carros, os táxis Austin, e as pessoas. Presto mais atenção nos casais que passam abraçados. Fico pensando se estarei assim daqui a duas horas.

O bar está cheio. Consigo uma mesinha e peço vinho. Bebo muito depressa. Como vai me receber? Estarei bonito ou feio? Sua irmã e o sócio também vieram e vai ser um choque para todo mundo. No terceiro copo estou mais confiante. Dou uma altíssima gorjeta e saio de volta para o hotel. Londres. As ruas limpas, os gramados, os prédios brancos com telhados pretos. O som dos meus passos na calçada. Vou andando, respiro fundo e novamente vem essa questão moral. Costumamos sair, eu com a minha namorada e ela com seu marido. Tenho medo da deslealdade. Não sei o que fazer quanto a isso. Simplesmente vou deixando que a emoção me envolva. Costumo pensar em Henry Miller. Às vezes funciona, às vezes não. Hoje estou tão longe de casa, tudo é tão diferente que parece outra vida. Parece que o cara não existe. Eu a estou conhecendo antes dele.

Quando chego ao hotel a mulher faz um sinal com a cabeça de que ela chegou. Estou ensaiando o que dizer desde o avião. Subo as escadas, primeiro devagar, depois depressa. Quero ter o pique rápido, parar de pensar tanto porque sinto que está me prejudicando. Demoram em abrir a porta e eu vou perdendo o impulso, não sei o que fazer com os braços, ponho o dedo em cima do olho mágico, estou ficando fraco. Então eu a vejo num relance porque já pulou para mim, apenas os cabelos, tão longos louros e essa voz tão quente e tão alta, com a confiança que nunca tive. Os primeiros beijos são rápidos e fortes, depois vão se alongando e eu já passo a mão em todo o seu corpo. De dentro do quarto vem uma voz perguntando “quem é? ”, e ela me puxa e não diz nada, só me põe na frente e eu vejo a surpresa no rosto da sua irmã. Logo depois um sorriso, me beija e um abraço muito apertado. Sim, sou eu mesmo, elas riem e batem palmas de excitação e dizem que não acreditam, e quanto ao cara que está junto não há problema, ele curte a situação, adora as duas e detesta os maridos. Não vai contar nada. Sempre soube de tudo, ele diz.

As luzes da rua passam suavemente pela cortina. Fica tudo meio azul por causa do gás néon do lado de fora. Eu rolo para cima dela e vou entrando vagarosamente, ela geme baixinho e diz que está tão bom que não acreditava que eu viesse, que me quer dentro o tempo todo e fecha os olhos enquanto eu deslizo mais fundo.

De manhã saímos todos juntos. Eu acompanho o trabalho deles. Visitam lojas e compram roupas. Tudo o que acham bonito. Nunca perguntam os preços, só vão comprando. No Brasil a fábrica vai produzir igualzinho. Muitas vezes elas experimentam as roupas. Seus corpos são perfeitos. Ficarão com essas peças para uso próprio depois de copiá-las. Imagino que seja a profissão de sonho para muitas mulheres. Paramos para que descansem e ela quer me mostrar umas coisas usadas, clássicas, tipo camisa de lenhador canadense. Escolhe uma para mim, coloca no meu peito para ver se é do meu tamanho. Aproveito e a seguro pela cintura. Aperto contra o meu corpo. Ela diz para parar, mas eu vou apertando, nem me importo. Ela vai amolecendo, suspira e diz que agora não adianta mais, “viu, agora não tem mais jeito, pronto, já aconteceu” e eu fico surpreso, nunca vi uma mulher assim. Ela diz que não sabe por que, mas “acontece” quando está comigo.

E o tempo vai passando. Faltam dois dias para que viajem. O seu marido está esperando em Paris, e ela começa a se afastar de mim. Quando vamos ver o Dizzie Gillespie a sua frieza alcança o máximo. O piston altíssimo toca Night in Tunísia e eu fico radicalmente chapado com esse som e com o vinho. Nós brigamos na entrada do hotel. De manhã ela está na porta do meu quarto e me beija, mas eu mesmo já estou diferente. Quando nós quatro saímos ela resolve, na frente de todos, dizer o que pensa sobre a situação de cada um. Só fala em hipocrisias, falsidades e por aí afora. Parece que ninguém presta. Entrou no estilo riponga e eu sei que ela é tão chique. Não quero ouvir mais nada. Fico longe deles enquanto discutem. Solitário. Muito quieto. O grupo se dispersou. Vou andando com as mãos no bolso do casaco e de repente sinto a suavidade de um braço ao redor do meu. É a sua irmã. Olho para ela, fico embaraçado, meio sem jeito. É solidariedade, ou ela gosta de mim ? Antes de qualquer definição, alguém grita seu nome e pronto, foi embora. Belas mulheres, grandes desencontros.

Peguei o avião e fui para Amsterdam. Bebendo Courvoisier dia e noite .Preferia os bares com mesinhas na rua. Achava que as pessoas ao meu redor podiam ver através de mim, que conheciam tudo o que se passara. Fiquei lá, com os casais de namorados passeando de bicicleta e jogando seu amor na minha cara.

Mag

Ruth_Roman

“A ação é consoladora. É inimiga do pensamento e aliada das ilusões lisonjeiras”.

J. Conrad

A casa ficava numa rua sem saída. Enquanto manobrava o carro ele pensou que a vida toda desejara morar num lugar assim. No final de uma rua sem saída. Ficou muito tempo olhando, com as mãos em cima do volante. O que lhe chamava a atenção era a enorme e única árvore na frente, com uma grande corda amarrada no seu primeiro galho. A corda segurava um pneu velho. Quer dizer, aquilo é um balanço. Uma paisagem americana, alguma coisa meio desolada, aquele pneu dependurado e quieto. Nunca vira uma criança usando o brinquedo.

Agora chegava a pior parte: ele saía do carro, abria o portão, caminhava sete passos e tocava a campainha. Sempre aquela sensação de que poderia ser um intruso. Então por que não dava meia volta, entrava no carro e sumia? Difícil responder. Ele achava que estar ali fazia parte da sua “perda de integridade”. Bem, ela aparece e muita coisa se explica. Quando sorri os olhos brilham, o rosto se ilumina e é impossível você não sorrir também. Quando começa a falar, então basta olhar para ele para ver que está se desmanchando. Só vai sair dali amarrado, arrastado, chicoteado. Ela sabe tão bem disso que vai à sua frente, segura de si, e ele atrás, babando, dando cambalhotas e dizendo “sim, sim, sim”. Geralmente é isso o que acontece, mas hoje alguma coisa mudou.

PODEROSAS FORÇAS CÓSMICAS ESTÃO INVADINDO SEU CORPO. DENTRO DE POUCAS HORAS ELE ESTARÁ COM ENERGIA ATÉ NA PONTA DOS DEDOS. VAI SER UM DIA DIFERENTE!

No interior da casa ele olha tudo como se fosse a primeira vez. Ela está de quimono, depois passa para um biquíni e depois para um short que é perfeito para o seu corpinho. Não é um jogo de sedução porque ela não precisa, não é? Enquanto isso ele começa a beber. Sabe que não deve, a bebida lhe faz mal, mas hoje existe alguma coisa no ar, e então segue bebendo. Chega uma amiga dela. Traz uns trabalhos de desenho, muito ruins, mas ele elogia como se fossem o máximo. Esse seu comportamento também faz parte da sua “perda de integridade”. No passado ele teria ficado mudo, ou balbuciado alguma coisa educada.

Quando o telefone toca ele sente ciúmes. Pode ser o ex-marido dela, um tipo carregado de ódio, mas que essa gracinha, na sua confusão emocional, ainda ama. Portanto agora ficou chateado, pensando nos desencantos que teve com tantas mulheres, e na multiplicidade de sentimentos nessa casa. Mas da maneira como está se carregando de energia ele já tem uma frase de Shakespeare na cabeça: “Um céu tão sujo não clareia sem uma tempestade”. — Ah, é disso que precisamos por aqui! Uma boa tempestade!

É domingo. O majestoso sol já está no ocaso enquanto os personagens da casa da rua sem saída lutam por um pouco de sanidade em suas vidas. Eles ouvem música, passeiam, comem, encontram amigos (ele ainda bebe) e continuam numa espécie de desespero contido porque nada muda. Nada muda. Ele sabe que ela está se debatendo com o passado, fica inerte no presente e não vê caminho algum a seguir. Assim ela se desespera. Tudo porque o seu coração está preso numa cela de segurança máxima. O terrível carcereiro é o cérebro. Ele nunca deixará que a emoção alcance o nível que o coração deseja. (Conselho não adianta nada, mas está claro que ela precisa torcer a mão do destino). O coração dele também está preso. Talvez por isso ele esteja bebendo tanto. Talvez queira adormecer o carcereiro para que ele consiga se libertar. Ah, faz muito e muito tempo que descobriu a força da emoção, mas, da mesma maneira que Ahab , ele também não tomou a vida em suas mãos. O seu cérebro, seu torturador, se encarregou das decisões e, hoje ele colhe todas as tempestades dos ventos que semeou.

Eles voltam para casa à noite. Nesse momento os dois estão sós. Então ela anuncia que uma amiga vai chegar. O que eu posso dizer? Foi extraordinário. Quando essa mulher entra na sala ele fica um palmo mais alto, e vinte e cinco anos mais moço. Prata e ouro cobrem o seu corpo com um brilho intenso e toda a sua silhueta está acompanhada por uma faixa de raio laser de trinta centímetros. A sala resplandece e dois dos três cachorrinhos correm, só um fica ao lado dele, o lugar mais seguro da casa. Ele pegou as mãos dessa mulher perplexa, olhou fundo nos seus belíssimos olhos e passou tanto amor que ela tremeu da cabeça aos pés. Ela ainda tentou escapar e explicar coisas e continuar o seu roteiro de “eu não estou perdida na vida”, mas não conseguiu. Ele selou a mentira em seus lábios com um beijo de tirar o fôlego. Depois disse que seria o seu amante e ela concordou. Ele se move e a força magnética em seu corpo é tão grande que alguns objetos da sala mudam de posição. E onde está a sedutora? Telefonando para um amigo, pedindo socorro. Foi exatamente assim. Duas horas de cataclisma.

As forças cósmicas o abandonaram quando entrou no seu carro para ir embora. Hoje ele tem vagas lembranças de rostos e palavras por entre nuvens prateadas e reflexos dourados. Certamente sabe que houve amargura, porque chegando ao seu apartamento, nas pequeninas horas da manhã, ele ligou para a moça da casa do balanço no jardim. Ela chorava, e por alguns momentos ele se iludiu pensando que fosse por sua causa, que ela o amava, mas logo se sentiu perdido porque ela chorava por causa do outro que ele tinha sido.

VERA

Anne_Baxter

A nova aluna chegou enquanto fazíamos o alongamento para a aula de natação. Era muito bonita, com um rosto grego que não me deixou pensar em mais nada. Mas na hora continuei com os exercícios, e só olhei para ela uma vez. As aulas tornaram-se o ponto alto dos meus dias. Um dia eu a vi com seu filho, um rapaz alto e magro. Ela ficou na ponta dos pés, envolveu-o com os dois braços e o beijou, fechando os lindos olhos e dizendo baixinho: “ meu filho querido”! Um quadro com tanta classe e carinho que eu senti muita pobreza em minha vida.

Então me afastei das pessoas e comecei a andar pelos gramados e pelas quadras de tênis. Muitas vezes dava intermináveis voltas pela cidade. Havia um festival com filmes da década de 40, com aquelas mulheres que sempre me impressionaram tanto. Isso aumentava a minha nostalgia. Eu chegava tarde em casa, e logo procurava pelo seu carro. (Nós morávamos em pequenos chalés, um ao lado do outro). Alimentava sonhos loucos de que ela também me observava. Que também vigiava meu carro.

E assim se passou muito tempo até que descobri que ela perguntava por mim. Naqueles dias eu já estava tão doido que era difícil guardar as aparências. E havia o seu marido me convidando para jogar tênis, ou tomar uma bebida. Eu não sabia o que se passava na sua cabeça, mas ele me olhava como um veterano cansado de briga por aquela mulher.

Era uma tarde quente e tranqüila quando eu a chamei para a varanda que unia nossas casas. Nós nos sentamos ao redor de uma pequena mesa com um jarro de limonada. Outra moça se aproximou e ficou conosco. As duas colocavam os pés descalços em cima dos meus e acariciavam minhas mãos e meu rosto. Depois chegou um amigo que estava de passagem pela cidade. Ele começou a falar mansamente, e todos eram cúmplices de um momento raro, todos sem medo, sem nenhuma pressa, sem ansiedade, parece que preparados para aquela liberdade desconhecida. Quando ela fez uma brincadeira muito graciosa eu ri e olhei com força para seus olhos. A maneira como ficamos nos vendo foi um momento que eu sei que nunca mais vou esquecer. Ela sustentou o meu olhar tanto tempo que houve um silêncio inesperado naquela mesa. Tive muitos pensamentos audaciosos. Queria dizer que a amava e que seu casamento havia acabado. Mas de repente me veio à cabeça o nome de um filme, “Vendaval de Paixões”. Então fiquei de pé, virei-me de costas para eles com as mãos na cintura, olhando para o chão. Desliguei-me de tudo. Pensava na beleza ingênua do título, e também em seu significado tão real. Voltei a olhar para ela, e seu rosto perdera a suavidade. Havia muita determinação em direção contrária ao que eu queria. De repente as pessoas haviam saído do sonho, a magia desaparecera, e o medo voltou. Algumas palavras envergonhadas de despedida, e todos se moveram rapidamente. O vento quente entrava pelo caminho entre os chalés. Caminhávamos quietos, dando tudo para nos separar o mais rápido possível. Entrei no quarto, coloquei um disco do Frank Sinatra, e me joguei no sofá, sufocado pela angústia de perde-la.

 

 

Marilena

Linda_Carter1

Naquela noite houve um encontro de alta tensão entre dois amantes de pouco caráter. A mulher, envolvida por uma situação inesperada, tornou-se estranhamente vulgar. O homem, atingido no fundo do seu coração, mostrou-se fraco.Depois de todo o sangue psíquico derramado, quando ele saiu caminhando pela rua, pensou que mesmo se estivesse com a pessoa mais amada e que era a sua antiga esposa, e fosse surpreendido pela mulher, nunca a teria deixado tombar. (Ele tinha ido para o chão). Não esperava fidelidade. O terrível tinha sido a maneira como defendera aquele que estava lá dentro, ela, ali, em pé diante da porta da casa, e depois pedindo desculpas e dizendo coisas que ele já não ouvia mais.

Era uma noite escura e um longo caminho. Arrependia-se da passiva retidão que mostrara. Ela merecia ter sido esbofeteada, mas só conseguia pensar na delicadeza que vinha do seu sorriso, na sua sensibilidade e em algum carinho. Essas características dela, sufocadas, lutando para permanecerem acima da linha de sombra que ela mesma havia criado. O homem parou um pouco para se recompor (porque ainda estava emocionado). Lembrou-se da pergunta que muito tempo atrás ela fizera (se ele havia vendido sua alma ao diabo) e dentro dele novamente fluiu a emoção que sentira, porque ela falara com graciosidade e ele imaginara preocupação por sua vida. Muitos sonhos estavam juntos quando passou os braços pela sua cintura e a beijou. Temia agora que esse momento nunca mais fosse esquecido e nervosamente fechou os punhos com força. Pensou nos versos de John Greenleaf Whittier:

De todas as palavras tristes, ditas ou escritas

As mais tristes são essas: “Poderia ter sido”!

Poderia ter sido! Sim, eles mentiam um para o outro pois o amor pelo passado era evidente nos dois, e enquanto ele se apaixonava houve um dia em que disse a ela que escolhesse, porque existia a honra, e ele falou sobre todas essas coisas que os homens consideram importantes, e ela ouviu e não disse nada.

Caminhava com dificuldade entre as pequenas poças formadas pela chuva. Resolveu pedir carona. Fez um gesto quando passou um carro, mas foi tão pouco convincente que ele mesmo riu. Foi um riso feio, sarcástico, e então ele pensou em como haviam se amado tão mal da última vez, mas sem dúvida ele havia se despedido com muita confiança nos próximos encontros porque os homens são assim. Um amor juvenil seria mais condescendente, mas na idade deles o prazer transforma-se em dogma.

Faltava pouco, já avistava o fim do caminho, e então o demônio falou: — Nunca teria havido esta noite se ela tivesse sido sincera nos momentos em que você tentou por os pés no chão. Mas ele estava mentindo porque o homem sempre soubera que junto dela a dúvida acompanhava o amor, e que para os dois não existia nada que fosse definitivo, para ela talvez os filhos, dos quais ele só conheceu um. Dentro dele cresceu a sensação do final infeliz e todos os seus sentimentos foram envolvidos por uma voluptuosa melancolia:

“A lonesome train on a lonesome track

Seven coaches painted black

A slow train, a quiet train

Carryng Lincoln home again” …

 

Ely

Estou tremendamente sozinho. Já ouvi uma fita do Willie Nelson vinte vezes seguidas. E um lamento contínuo que vai me embalando, enquanto permaneço sentado com uma das pernas na mesinha,com os olhos semi-cerrados, fixados nas árvores, lá na frente. Posso ficar assim durante muito tempo. Ás vezes esse estado nostálgico é diferente. No Rio, ouvindo o Bob Dylan, devo ter caminhado uns dez quilômetros de uma lado para o outro, na sala de meu apartamento. Ingressava em vários sonhos e os desenvolvia obsessivamente. Hoje olho para as árvores. Nenhum plano, nenhuma fantasia. Só fico olhando. Então, com suavidade me lembro dessa mulher que amei. Quando eu me viro para a estante que está atrás de mim, procurando um livro com a sua dedicatória, vejo uma braçadeira colorida. Eu mesmo a tirei ontem de uma velha mala e a coloquei alí para que pudesse tê-la mais perto. Faz parte da minha juventude.

Primeiro me mostraram uma dúzia de fotografias. Perguntaram se já havia visto algum dos homens. Olhei bem devagar. Não reconhecia ninguém. Disseram que estavam espalhados pelo mundo, mas qualquer um deles poderia estar ali, na universidade. Pararam de falar e se fixaram em mim. Eram caras fortes, durões, com cabelos escovinha e rostos de pedra. Eu repeti que nós os ajudaríamos. Conversaram entre eles e não foi preciso o tradutor para que eu soubesse que seríamos a guarda de honra. Explicaram que para conseguir chegar à distância de um tiro a pessoa teria que estar disfarçada. A idéia era que os líderes estudantís poderiam perceber com mais facilidade qualquer suspeito. Recebemos instruções e começamos a viver a sensação de estar num plano internacional.

No dia da solenidade nós ficaríamos junto dele, sempre observando a frente e os lados. Usaríamos braçadeiras com as cores da França – azul, branco e vermelho. Faltavam dois dias para que ele chegasse e a universidade estava emocionada. Eu acho que o general De GaulIe era o homem mais famoso do mundo. Escapara de vários atentados e sua coragem e altivez faziam com que fosse uma lenda viva. Na França, quando sua limousine foi varrida por mais de cem tiros de metralhadora e ele escapou ileso, suas primeiras palavras foram “êles não sabem atirar”. Barra pesada.

Era odiado pelos franceses da Argélia. Muitos haviam jurado solenemente que o matariam. Alguns eram militares. Entre eles Salan, o general mais condecorado da França, ex-comandante da Argélia, que havia ameaçado tomar Paris à frente de milhares de paraquedistas. Agora estava foragido e disfarçado. Na sua última fotografia ele usava um bigodão. Barra pesada.

Vinte e três anos de idade. Empolgado com as minhas novas responsabilidades fui assumindo a personalidade de segurança. Resolvi examinar o lugar onde ele faria o seu discurso. Os carpinteiros estavam armando o palanque com uma prancha de vinte centímetros acima do chão. No meio um vazio. Era o lugar do general, que tinha quase dois metros de altura. Sem a prancha as pessoas seriam muito pequenas ao seu lado.Sempre que podia eu ia conversar com os meus colegas franceses. Eles me contaram que o carro do presidente jamais poderia cruzar com outro. Horas antes dele passar, voando baixo, as ruas deveriam estar desertas. Os carros que estivessem estacionados seriam rebocados. Tudo previsto. Tudo fanaticamente cronometrado. Explodiriam com qualquer coisa que lhes atrapalhasse. Só nessas condições o general se deslocava. Os governos dos países que ele visitava sabiam disso.

Quando De Gaulle chegou não houve nenhuma decepção. Entendi porque diziam que ele caminhava junto com sua estátua. Uma figura muito impressionante. Fiquei bem à sua frente enquanto discursava. Parecia improviso, mas ao seu lado um assessor fazia correções numa folha de papel azul. Ele decorara o discurso. E também todos os outros que faria na sua viagem pela América Latina. A revista Manchete publicou uma enorme foto com duas páginas de centro. Sete ou oito estudantes vivendo um episódio que contariam muitas vêzes por toda a vida.

Naquela noite fomos para a Praça dos Três Poderes porque sabíamos que De Gaulle estava sendo recepcionado pelo presidente Castello Branco. De frente para o palácio do Planalto começamos a gritar “De Gaulle!, De Gaulle!, De Gaulle!”,e Brasília era tão pequena e íntima naqueles dias, que atendendo aos gritos de apenas umas vinte pessoas a cortina foi semi-aberta, e apareceram os dois presidentes, um ao lado do outro. Ficamos boquiabertos. Castello Branco era baixíssimo, talvez não alcançasse 1,60 e o que havia sido evitado na universidade estava acontecendo naquele momento.Ele estava cômico ao lado de De Gaulle. No entanto, parecia extremamente senhor de si, fez um largo gesto mostrando-nos ao seu convidado, e eles abanaram as mãos para nós de uma forma pessoal, diferente, parecia muito sincero porque éramos tão poucos. Devem ter ficado satisfeitos porque a noite estava linda, a praça belíssima, e nós lá, a juventude vibrante. Aplaudimos De Gaulle freneticamente, e a cortina se fechou. Infelizmente os aplausos pareciam dirigido aos dois, e pior, quando Castello nos mostrou, parecia que estava exibindo o feliz povo brasileiro para o seu convidado. Por motivos óbvios odiávamos Castello e ficamos muito constrangidos perguntando-nos se não haviamos traído alguma coisa séria com aquele mal entendido. Como éramos moços!

Depois do que aconteceu na praça peguei o carro, e, com a mulher que havia virado a minha cabeça e mais três amigos, fui ver o palácio da Alvorada. Eu não achava realmente que pudesse chegar até lá, porque era onde o general estava hospedado. Enquanto passava pela pista olhávamos os camburões da polícia dentro do mato. Ninguém nos parou. Quando chegamos em frente ao palácio senti que havia alguma coisa no ar, alguma coisa fora do lugar. Então ouvi as sirenes mais fortes da minha vida. De GaulIe estava vindo. Mais um segundo e apareceram os motociclistas. Estavam desesperados. Jogavam as espetaculares Harleys em cima de nós, desviando um metro antes do choque. Dando tudo. No limite. Logo vieram os carros em altíssima velocidade. Cresciam assustadoramente passando colados em nós para esconder a limousine. Os seguranças estavam com meio corpo para fora das janelas. Metralhadoras, rifles e pistolas apontadas para nossas caras. Eu sabia que atirariam imediatamente se fizessemos alguma grande bobagem. Mais tarde um jornal diria que o grande esquema de segurança havia sido furado por um bando de estudantes. Que a polícia brasileira era culpada. Youth!

 

 

Patrícia

Debaixo da grande quantidade de papeis espalhados em cima da mesa em completa desordem, algumas vezes formando pequenas pilhas, ele tem um envelope que não sabe de que maneira chegou alí. Quando precisa encontrar um documento, um texto, um telefone, é possivel que o envelope apareça por inteiro, ou somente uma ponta, mas é o suficiente. Nada mais tem importância. Algumas vezes ele o segura, outras apenas olha e tenta continuar o que estava fazendo, mas a atmosfera fica diferente por alguns segundos, ou minutos, depende do quanto ele se permitir. O papel é de ótima qualidade, e quando se levanta o triângulo que pode abri-lo (porque ele não foi colado) pode-se ver que a parte interna é de um vermelho forte, imitando couro de crocodilo, o que faz um belo contraste com a sua cor creme. O seu nome está escrito com uma letra inclinada e firme. Mesmo sem retirar o cartão é possivel ver a parte de cima de suas bordas, bem finas, também vermelhas e muito elegantes. Nesse dia ele o segurou com as duas mãos, afastando a cadeira do computador para esticar as pernas. Ler o cartão significava sofrimento, sobre isso não havia dúvida, mas ele sempre imaginava que tiraria o envelope da mesa colocando em outro lugar, onde talvez nunca mais o visse. Faria isso, hoje, ou amanhã.

Meu Querido, Agora você vai poder ouvir, sem problemas esta adoravel coleção. Não podia deixar de mandá-la pelo Sedex 10, já que você decidiu passar um longo período longe de mim- apenas com um curto intervalo de presença no meio, lá pelo dia 20, é isso mesmo? Aproveito para contar que no dia 22 vou oferecer um brunch aqui em casa para alguns amigos e parte da família e já estou contando que você estará presente. Não negocio

Muitos beijos e muito amor,

Patrícia

Vagarosamente colocou o cartão de novo no envelope. Como foi possivel perde-la? Não queria se levantar e não queria ficar alí, sentado, deixando que o sofrimento crescesse em seu peito. A vida que já não suportava. Ficou com os olhos fechados muito tempo. Um sonho, um pesadelo. Quando o amor se foi ? Qual o momento preciso ? Ela saberia ? Lembrou-se do dia em que acordou e no travesseiro estava o bilhete maravilhoso: Meu amor, fui na padaria e volto logo. Agora ele tinha se arriscado além do que poderia. Levantou-se, mas não tinha para onde ir.

11 maio, 2009 às 21:59

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Categoria: Artigos

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