Nelson Freire e seu novo CD com os Noturnos de Chopin (João Marcos Coelho)

 

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Maior qualidade do álbum, com integral dos Noturnos, é o equilíbrio do intérprete, que não cai na tentação do virtuosismo.

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Há um ano Nelson provocou reações superlativas no mundo inteiro com seu CD dedicado a Debussy, o especialista nas chamadas meias-tintas. O brasileiro criou várias camadas de gradações de dinâmica entre o meio-forte e o pianíssimo (até os famosos 4 “p”). Pois com este álbum duplo ele confirma o seu incrível talento para lidar com sutilezas de dinâmica. De novo, raramente ultrapassa-se o reino do meio-forte; a zona sonora de preferência do compositor polonês nestas 20 pequenas obras-primas gira daí para baixo, até os pppp.
Já se falou à exaustão que os noturnos são para Chopin o seu modo mais íntimo de criação musical. Talvez por isso mesmo – e Nelson demonstra isso com um refinamento notável -, ouvi-las em conjunto pode nos dar a chave para a compreensão da arte pianística do compositor, já que ele conviveu com o gênero dos 17 anos, quando ainda morava em Varsóvia, até a morte em Paris em1849.

A recusa ao virtuosismo; o gosto pelo detalhe; a construção dos longos arcos que constituem as melodias características dos noturnos; o entrechoque do acompanhamento aparentemente imutável da mão esquerda, com frequência em tapetes de arpejos, e o rubato aplicado com extrema parcimônia no fluir da mão direita; o timbre brilhante e cristalino que extrai do piano – todos esses são atributos que fazem desta gravação um modelo e referência (e olhem que há centenas de registros dos noturnos, incluindo leituras iluminadas como as de Rubinstein, Arrau, Ashkenazy, Maria João Pires, Barenboim e Pollini, entre tantos outros).

Quem sabe a maior qualidade desta versão de Nelson Freire seja o equilíbrio. Ele jamais descamba para o sentimentalismo barato que acomete mais de um dos ilustres citados; nem se deixa arrebatar tentando acentuar coisas que não existem nos noturnos, tal como a virtuosidade, por exemplo. É por causa dessa ambivalência que essas peças são até certo ponto desprezadas no conjunto da sua produção pianística, tidas como meros produtos de consumo, destinados às moçoilas bem-nascidas dos salões parisienses e às casas que em cada vez maior número compravam o seu próprio piano. Peças musicais fáceis, simples, destinadas a amadores.

Chopin criou temas ao mesmo tempo raros e naturais, para um gênero efêmero, destinado a não viver mais do que algumas semanas ou meses como peças favoritas nos salões parisienses. Transformou pecinhas de consumo em seu laboratório de experimentação para gêneros mais ambiciosos, como os scherzi, as sonatas e a barcarola. Como Chopin, Nelson também possui um toque ao mesmo tempo raro e natural.

(Publicado no Estadão em 13 de março de 2010)

15 março, 2010 às 12:05

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Categoria: Artigos

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