Nelson Freire escreve sobre Chopin

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“Como definir o que faz da música de Frederic Chopin (1810- 1849), celebrada este ano por conta de seu bicentenário de nascimento, um universo tão especial? O grande pianista Arthur Rubinstein disse certa vez que, ao interpretar suas obras, tinha a sensação de que ela tocava diretamente o coração das pessoas. E é fascinante perceber que isso vale tanto para leigos quanto para melômanos. E, por que não, para os próprios pianistas, para quem suas peças são um desafio constante. A brasileira Guiomar Novaes costumava dizer, divertida, que Chopin exige tudo do intérprete, “que precisa tocá-lo com cabeça, coração, com o pé, com a mão, com tudo”. Já Martha Argerich me confessou, em uma de nossas muitas conversas sobre sua música, que acha Chopin o autor mais difícil de tocar. “Os pianistas erram nele mais do que com a obra de qualquer outro compositor.”

Desde criança mantenho relação estreita com essa música. Mas eu me lembro, aos 14 anos, do impacto provocado pela leitura da Guiomar para o Concerto nº 2 para Piano e Orquestra. Foi paixão à primeira audição. Bastava ouvir os dois primeiros compassos do segundo movimento para perceber como essa música era incrível – e como a sua leitura a reinventava, forçando a própria orquestra, comandada por Otto Klemperer, a uma leitura diferente do que estávamos acostumados. Comecei a colecionar gravações ao vivo desse concerto com Guiomar. E, desde então, ele tem um lugar especial na minha vida e na minha carreira. Gosto muito do primeiro concerto também, do qual a Martha fez uma excelente gravação com o maestro Claudio Abbado, mas o segundo, que foi o primeiro a ser escrito, ainda hoje me parece mais misterioso, tocante, com a emoção à flor da pele.

Mistério, expressividade, emoção e até um pouco de exotismo — tudo isso ajuda a explicar a genialidade de Chopin, ainda que não dê conta por completo da tarefa. E não podemos esquecer das pequenas revoluções de sua escrita. O último movimento da Sonata da Marcha Fúnebre é fascinante, maluco até, imagino o escândalo que deve ter sido para a época. E isso já vem desde as primeiras obras. Schumann ficou doido com as Variações Op. 2 sobre um tema de Don Giovanni. Sua música está repleta de harmonias e invenções que só vamos encontrar bem mais tarde, em Maurice Ravel, por exemplo, como no caso dos acordes dissonantes no fim do Scherzo nº 1. Não gosto de comparações. Mas há uma passagem no primeiro do Liszt, segundo movimento, parecida com o recitativo do segundo movimento do Concerto nº 2 de Chopin — no entanto, fica a sensação de que Chopin vai mais fundo em busca da expressividade, com resultados impressionantes.

Isso sem falar nos Noturnos. Ao longo da gravação, em dezembro, dos vinte noturnos de Chopin para a Decca voltei a me encantar com a riqueza de mundos que essas peças sugerem. Drama, poesia, sedução, cada um dos noturnos oferece um universo. E o interessante é justamente essa possibilidade de transitar de um mundo ao outro. E enfrentar o desafio de fazer o piano cantar. Outro dia vi uma entrevista de Vladimir Horowitz para a televisão italiana na qual ele dizia que o mais difícil no piano é fazê-lo cantar. Chopin entendeu isso. E o canto em sua música é fundamental, você enxerga os ecos das óperas do bel canto, de Donizetti e Bellini.

O trabalho com a música de Chopin dura a vida inteira, uma eterna descoberta. É um prazer incrível estudá-lo, é tudo tão bem escrito, o legato, o cantabile. E de certa forma ele exige do intérprete uma especialização. É preciso se entregar a ele. Aí sim o resultado fica digno de sua criação. Acho fascinante, por exemplo, o equilíbrio necessário entre liberdade e disciplina. Gosto da definição de Liszt: para ele, o rubato em Chopin era como uma árvore — as folhas sacodem ao favor do vento, mas o tronco está ali, constante. Às vezes me perguntam em entrevistas se eu gostaria de tocar outro instrumento. E eu me pego pensando que não — pois sem o piano, eu não teria a música de Chopin.”

Em 10 de março, Nelson Freire lança álbum dedicado aos Noturnos (Decca) e no dia 13, abre na Sala São Paulo a temporada comemorativa da Sociedade Chopin do Brasil, interpretando o Concerto nº 2

(publicado no Estadão em 28/02/2010)

 

1 março, 2010 às 14:22

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Categoria: Artigos

Comentários (2)

 

  1. Antonio Octavio Cintra disse:

    Fascinante o texto do Nelson Freire. Para mim, uma surpresa como esse grande intérprete se revela, também, um músico plenamente consciente, capaz de expressar com palavras o que é a música de Chopin e como a sente. Muito bom ter reproduzido a matéria.

  2. Pedro disse:

    O Nelson Freire mostra também na escrita porque é o melhor pianista! Me chamou a atenção esta frase: “O trabalho com a música de Chopin dura a vida inteira, uma eterna descoberta”. É impressionante a profundidade dessa frase; apesar de ser aparentemente curta, encerra muitas coisas dentro dela…
    Sem querer ser repetitivo, mas nunca é nem será demais enobrecê-lo: o Nelson Freire é um gênio!

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