Violência destrói Estado haitiano ( Claudio Mafra – Estadão)
Fotos: Claudio Mafra. Reprodução permitida mediante citação dos créditos
Violência destrói Estado haitiano
Duas décadas de golpes, disputas internas e intervenções estrangeiras desintegram instituições e ampliam miséria
Claudio Mafra – Especial para o Estado
Porto Principe
A patrulha brasileira sai do antigo reduto de criminosos, o Forte Nacional, na favela de Bel-Air, com o objetivo de intimidar os bandidos e confraternizar com o povo haitiano. O Major Lídio está no jeepão da ONU com mais 5 soldados que devem estar assados dentro de tanto uniforme e equipamentos de proteção. Sou dispensado do colete à prova de balas porque já viram que eu não vou usar de jeito nenhum. Mesmo de bermudas e camiseta já estou quase nocauteado pelo calor.
O carro vai devagar entre as vielas do antigo Fort Dimanche, lugar onde Papa Doc enterrava vivos os seus adversários, e que hoje é uma favela degradante. Em nossa passagem somos muito bem recebidos. Todos estão acenando. É divertido ouvir os soldados brasileiros dizendo “bonjour!”, para os haitianos. Foram treinados para serem especialmente educados: “Bonjour madame, bonjour monsieur, merci, merci… Tão populares, e não se trata do futebol, a eterna motivação que ajuda os brasileiros no exterior. Além de serem combatentes da ONU, ainda gozam do prestígio do maravilhoso trabalho feito pelo major Lídio. Ele ajuda as crianças de até 16 anos. Na área médica foi construída uma clínica geral e odontologica. Na educacional ensinam informática, formação de agentes de saúde, português, inglês, espanhol. Além disso tem capoeira, dança, corte de cabelo, gincanas pinturas, artesanato, futebol e atletismo. As crianças participam de jogos, aprendem uma profissão, ou simplesmente saem por algumas horas do convívio sufocante nas favelas.
O próprio major é uma figura única. Tornou-se famoso. Por ser muito grande e forte, é chamado de BIG- LI. É um ídolo das crianças. De longe elas já o identificam e vem correndo aos gritos de BIGLI!, BIGLI!, BIGLI! Agarram-se ao seu corpo. Gritam de alegria. Ele não consegue se mover. Em nenhum momento olharam para a minha câmera. Lágrimas correm pela sua face . Ele conhece a maioria delas, chamando-as pelos nomes. Enquanto andamos me diz que vai sentir muitas saudades quando vier o próximo contingente. Custo a acreditar que o comando brasileiro possa ficar sem ele.
Sou levado para uma pequena escola improvisada e me pedem para que faça algumas perguntas aos meninos. Eu ensaio um pequeno discurso, as crianças atentas, educadas, e o professor, tão humilde, me agradece com toda sinceridade. A cena é muito comovente. Na saída está quente demais, estou sem boné, o major fica com medo de que eu pegue uma insolação e decide que tenho que ir embora. Ordens do general. Depois percebe uma minúscula mancha verde no meu braço. É água de esgoto. Diz que preciso me lavar imediatamente. Tudo aqui é perigoso para a saúde.
O médico François Duvalier, o “Papa Doc”, que esteve no poder de 1957 até 1971, é seguramente a figura mais famosa de toda a história do Haiti. Foi um ditador sanguinário, excomungado pela Igreja Católica por sua ligação com o vodu, um tipo de umbanda com traços de malignidade. Mas, a marca registrada de Papa Doca foi haver criado uma polícia especial subordinada unicamente a ele próprio. O Haiti é um país de negros, o número de mulatos e brancos é inexpressivo. Então, essa polícia exclusivamente de negros, vestindo ternos e gravatas escuras, uma espécie de versão haitiana do FBI, usando óculos escuros redondos ( o que foi novidade na época), fez sucesso em todo o mundo pelo exotismo da sua aparência, aliada a um comportamento de crueldade e mistério. Eram chamados pelos haitianos de Tonton Macoutes ( bicho-papão) cujo comportamento, segundo a imagem feita pelo meu chofer, era de “um búfalo, ou um leão na selva”. A personalidade e o visual tonton-macoute transformaram-se em um cult. A bem da verdade, o mundo da época só tomou conhecimento de que existia o Haiti por causa do fascínio macabro do seu regime. Um dos que ficaram impressionados foi o grande escritor inglês, Graham Greene, que esteve em Port-Au Prince em 1965, e escreveu o romance Os Comediantes, mostrando o terror da ditadura duvaliana. Greene hospedava-se no hotel Oloffson, que ele usou com o nome de Trianon como ponto de referência para alguns momentos no livro. Hoje, completamente decadente, o Oloffson continua apenas como expressão do colonial francês. Papa Doc não gostou do romance : _ “ O livro não é bem escrito. Como obra de um escritor e de um jornalista não tem nenhum valor.”
Com sua morte, François Duvalier foi sucedido pelo seu filho, Jean-Claude Duvalier, apelidado com perfeição pela imprensa internacional de “Baby Doc”, uma figura estranhíssima, gordo, ocioso, uma certa indefinição sexual. Ele foi deposto em 1986, fugindo para a riviera francesa aonde vive muito bem até hoje, gastando os milhões de dólares roubados pelo seu pai e por ele mesmo. A França burocraticamente recusa-se a extradita-lo. Enfim, quando Baby Doc se foi, acabou-se o charme do regime. Muitos haitianos repetem a eterna ladainha dos que prezam pouco a liberdade: “no tempo de Papa Doc era melhor, havia mais segurança”.
Para se sobreviver em Porto Principe a melhor coisa a fazer é ficar sempre em algum lugar que tenha ar-condicionado. Depois, precisa-se de um bom 4×4 para enfrentar os enormes buracos das ruas. O problema é que as entidades internacionais que trabalham para tirar o país do caos também sabem disso, e a maior de todas, a ONU – o grande cabide de empregos – deve ter de centenas deles, o que torna o trânsito insuportável. Falta luz regularmente. A água vem em caminhões pipa e tem cheiro de podre. Muita coisa é estranha: Os quadros que os haitianos penduram nas paredes ficam absurdamente tortos. É vodu ou alguma coisa cerebral? Se eles vivem em estado de penúria como é que conseguem estar sempre com a roupa limpinha? Por que no calor de “derreter catedrais” eu nunca vi um haitiano sem camisa, ou de bermuda ? Na chuva, fortíssima, você olha pela janela do carro e percebe, espantado, que eles vão andando devagar, sem guarda-chuva, como se nada estivesse acontecendo, parecendo zumbis. O que isso quer dizer? Você vê mulheres lavando roupa na água do esgoto. O melhor mesmo é ir para a praia, na República Dominicana.
TROPAS DE PAZ
O general brasileiro Santos Cruz é o atual comandante das tropas enviadas pela ONU ao Haiti para liquidar com as milícias, os assassinos e seqüestradores, que sob manto de reivindicações políticas (seriam ‘partidários’ de Aristide), praticam a bandidagem pura e simples. O nome oficial é Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti – Minustah. Para chegar até ele, no Hotel Montana, passa-se por 6 soldados pesadamente armados.
O general está satisfeito. Tudo está dando certo. Ele comanda as tropas da Argentina, Uruguai, Sri Lanka, Brasil, Chile, Peru, Jordânia, Guatemala, Filipinas, Nepal e Equador, um total flutuante de 6.345 homens. O contingente do Brasil é o maior, com 1.211 homens ao qual estão agregados 30 soldados paraguaios. Os brasileiros são voluntários, passam por um processo de treinamento entre quatro e seis meses, ficam no Haiti durante seis meses e são substituídos em sistema de rodízio segundo critério do Exército. Ganham por volta de US$ 900 mensais.
Os meses de janeiro, fevereiro e março deste ano foram difíceis para as tropas.
‘O enfrentamento foi fortíssimo’, diz o general Santos Cruz. ‘Muito tiroteio, alguns soldados da Bolívia e da Jordânia foram feridos.’
Ele mesmo esteve em meio ao fogo cerrado. ‘Nós temos de dar uma resposta proporcional, não podemos exagerar e correr o risco de altos danos colaterais, atingir os civis inocentes. Felizmente o preparo é muito bom, e conseguimos nos sair bem nas emboscadas. Desde abril que não damos tiros.’
ONU venceu a milícia e o Haiti não vive mais um problema militar. Continua sendo um dos países mais pobres do mundo, com a corrupção sugando todo o dinheiro que chega do exterior em programas de ajuda
VACINAS
A cooperação brasileira fora da área militar foi descrita pela ministra-conselheira da embaixada brasileira, Isabel Heyvaert: ‘É vantajoso para o Haiti a grande experiência do Brasil em campanhas de vacinação para populações de difícil acesso, em lugares sem energia onde a conservação das vacinas é difícil. Esse é um projeto tripartite, porque o Canadá também participa.’
‘Outra contribuição nossa é o sistema de transferência de tecnologia de produção do caju’, prossegue. O caju é uma importante atividade econômica do norte do Haiti, no entanto as plantas são velhas e os métodos arcaicos. O Brasil é grande exportador e estamos trabalhando para introduzir técnicas modernas e variedades novas do caju tipo anão, que se tornam produtivos em um ano.’
Isabel ainda lista os cursos de defesa civil, de capacitação para bombeiros e aeroportuários – tão bem-sucedidos que o Haiti pediu um novo grupo de instrutores para 2007 – e enfatiza o projeto Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) ‘orientado para a coleta e o tratamento de lixo sólido em Carrefour Feuille, um bairro de Porto Príncipe. A idéia e a de que ao gerar renda para a população local, haja redução de violência, além de que sirva de modelo para outras áreas do país’.
Em resumo, a posição do Brasil em relação ao Haiti sustenta-se, segundo a diplomata, na seguinte premissa: ‘A cooperação técnica deve ser intensificada, e o Brasil vem insistindo com a comunidade internacional para que isso aconteça. O pressuposto óbvio é o de que se não houver desenvolvimento o país pode voltar ao ponto de partida.’
O Brasil, junto com a Espanha, também vem atuando no reflorestamento do Haiti, que é um país ecologicamente devastado, onde não se consegue enxergar duas árvores juntas.
Jornal Estado de S. Paulo
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