Crítica do blog à entrevista de Fernando Henrique no Estadão (ou, porquê não tivemos e nem vamos ter Oposição)
Estadão: A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Fernando Henrique no início da semana.
nota do blog: é tudo o que foi publicado no Estadão no domingo, 19 de setembro.
O sr. não acha que os exageros retóricos do presidente Lula vão além da circunstância eleitoral e podem estar desligando da tomada os aparelhos da democracia?
Sinceramente, não acho que o presidente Lula tenha uma estratégia nessa direção. Acho que a democracia tem raízes fortes no País, a sociedade é muito diversificada, a sociedade civil é mais autônoma do que se pensa, as empresas são poderosas, a mídia é poderosa. Não acho que o Lula tenha um projeto para cercear a democracia. O que ele tem é uma prática que, às vezes, excede o limite. Nota do blog: Então o Lula se torna autoritário sem querer, no processo de governar. Dificil entender as duas últimas frases. Pelas ações é que os governantes determinam sua concepção de democracia. Radicalizando, para ser melhor entendido: Somente com Mussolini e Hitler houve um projeto declarado de se acabar com a Democracia. Nenhum governo autoritário – depois desses dois – se declara anti-democrático. Quando muito aceitam dizer que estão em uma fase no processo de democratização, que pode até comportar uma ditadura temporária para alcançar a democracia mais adiante. Chávez acredita estar sendo democrático, da mesma forma que Lenin. De fato, embora FH esteja seríssimo, as suas duas frases soam como uma piada, uma ironia: “Não acho que o Lula tenha um projeto para cercear a democracia. O que ele tem é uma prática que, às vezes excede o limite. E continua FH: quando isso acontece, eu me manifesto. A democracia não é um fato dado, é uma constante luta. Se a gente começa a fechar os olhos às pequenas transgressões, se elas vão se acumulando, isso tudo distorce o sentido das coisas.
Há algum problema na origem da nossa cultura política?
Sim, a nossa cultura política não é democrática. Nós aceitamos a transgressão com mais facilidade, nós aceitamos a desigualdade perante a lei, para não falar das outras desigualdades aceitas com mais facilidade ainda. Você tem um arcabouço democrático, mas o espírito da democracia não está consolidado. Nota do blog: não está muito de acordo com o primeiro parágrafo quando diz: “Acho que a democracia tem raízes fortes no País, a sociedade é muito diversificada, a sociedade civil é mais autônoma do que se pensa, as empresas são poderosas, a mídia é poderosa” . Dificil dissociar essa frase com o espírito da democracia que não alcança a cultura política
E de quem é a culpa?
Não é de ninguém. Mas a responsabilidade para não quebrar esse arcabouço e reforçar o espírito da democracia é de quem tem voz pública. O presidente da República é responsável porque a conduta dele, no bom e no mau sentido, é tomada como exemplar. Portanto, ninguém é culpado, mas há responsáveis. Dificil entender: Responsável sem culpa. E, o presidente da República é responsável mas não tem culpa nesse processo que é maior. Até que é possível, mas no contexto da pergunta trata-se apenas de um exercício de intelectualismo, uma bobagem.
De que maneira explícita pode então ser atribuída uma cota de responsabilidade nesse processo ao presidente Lula?
Com a pergunta, ou o entrevistador se perdeu no emaranhado das relativizações de FH, ou resolveu exigir uma definição. Talvez o Lula é responsável mas não tem culpa tenha sido observado.
Uma das coisas que mais me surpreendeu na trajetória política do presidente Lula foi a absorção por ele do que há de pior na cultura do conservadorismo, do comportamento tradicional. Ele simplesmente não inovou na política. Se ele fez tudo isso é culpado de alguma coisa, não ? E esperar que Lula petista tivesse um comportamento diferente seria ingenuidade.
Dê exemplos.
Pelo visto o entrevistador desistiu e optou pela pergunta mais fácil de todas, aquela de alguém que não está entendendo nada.
O Lula adotou o clientelismo. Veja o caso do Amapá, onde o presidente Lula pede voto no fulano e fulano porque é amigo. Depois se descobre que o fulano está envolvido em escândalos, mas aí desenrola-se uma mistificação dizendo que nunca se puniu tanto como no governo dele. Isso é um comportamento absolutamente tradicional. Desde quando passou a mão na cabeça dos aloprados, o critério é sempre esse. No fundo, o Lula regrediu ao Império, aplicando a regra do “aos inimigos a lei, aos amigos a lei”. Ele não inovou do ponto de vista político, mas poderia ter inovado. Fez tudo isso, é responsável, mas não tem culpa, não quer cercear a democracia, apenas tem uma conduta que “na prática excede o limite”.
O sr. esperava um presidente Lula mais democrático, mas está apontando traços caudilhescos no comportamento dele.
Ôpa! O entrevistador resolveu reagir.
O PT quando foi criado se opunha ao corporativismo herdado do fascismo e de Getúlio Vargas. No poder, o que vemos é que ele ampliou esse corporativismo. O PT trata esse corporativismo como se fosse um movimento da sociedade, quando nós estamos diante da ligação de grupos corporativistas ao Estado e o controle desses grupos pelo Estado. No primeiro parágrafo FH diz que Lula não tem uma estratégia contra a democracia. Agora, dentro do conceito de “faz sem perceber o que está fazendo” admite que ampliar o corporativismo é prática do PT, que ofende a democracia como ele diz acima: “…nós estamos diante da ligação de grupos corporativistas ao Estado e o controle desses grupos pelo Estado”. A única pergunta que o entrevistador deveria fazer é ” gostaria que o senhor definisse o que é ” ter uma estratégia para cercear a democracia.”. Montar um esquema de roubos e dezenas de milhares de nomeações para se perpetuar no poder é, ou não, uma estratégia para cercear a democracia ? Colocar a Receita Federal como uma Gestapo para investigar a vida dos adversários, é ou não, uma estratégia ?
Responda “sim” ou “não” a esta pergunta: Lula tem alguma tentação a cultivar uma variante para a democracia popular?
Parece que o entrevistador perdeu a paciência com a relativização de FH
Sim. Essa notável resposta colide de frente com o primeiro parágrafo. A pergunta tinha sido: “O sr. não acha que os exageros retóricos do presidente Lula vão além da circunstância eleitoral e podem estar desligando da tomada os aparelhos da democracia”. A resposta foi:: “Sinceramente, não acho que o presidente Lula tenha uma estratétia nessa direção…Não acho que o Lula tenha um projeto para cercear a democracia. O entrevistador não fez mais do que repetir a primeira pergunta da entrevista, e a resposta foi totalmente contraditória com a anterior.
Explique a resposta.
Hilário. O entrevistador resolveu impedir FH de cair no incompreensível. Por isso usa a tática de fracionar didaticamente a pergunta.
Lula não tem esse propósito, (outra vez!) mas a recorrência do linguajar político e a forma de agir levam à crença de que o que vale é ter maioria. E democracia popular é o quê? A democracia é mais do que ter maioria, o que é conquistado à força pelas ditas democracias populares. Democracia também é respeito à lei, respeito à Constituição, respeito às minorias e à diversidade. Tudo isso é obscurecido nas democracias populares, onde se entende que, se você tem a maioria, você tem tudo e pode tudo. Tem o direito de fazer o que bem entender. O presidente Lula não pensa em fazer isso, (outra vez !), mas essas são as consequências do comportamento político que ele tem. Precisa ter limites. Afinal Lula tem um comportamento ditatorial, mas é sem querer! No fundo ele é uma ótima pessoa. FH está nos mostrando porque ficamos sem Oposição. Aliás, toda a entrevista é um modelo de vai e volta, de relativismo, de falta de objetividade, de academicismo, ou seja a vontade de pairar por cima das mesquinharias do dia a dia. Enxergar “além do óbvio”, ser imparcial, o grande professor, o grande intelectual em ação.
Concretamente, que tipo de limite deveria ser imposto ao presidente Lula?
Esse concretamente já é o entrevistador se precavendo contra a chuva de frases incompreensiveis .
Não se pode, por exemplo, ver o presidente, todos os dias, jogar o seu peso político na campanha eleitoral. E vem agora uma senhora recém-empossada como ministra-chefe da Casa Civil (N.R.: Erenice Guerra, que caiu na quinta-feira, um dia depois da gravação desta entrevista) acusar o principal candidato da oposição, o José Serra, de “aético”. Acusa por quê? Porque o candidato está protestando contra a violação do sigilo fiscal de sua família. Ela não tem expressão política alguma, mas baseia a acusação no quê? No princípio de que quem pode e quem não pode se sacode. É uma resposta compreensível, mas novamente se contradiz com respeito ao comportamento do governo. Lula não quer ser autoritário (a coisa vem assim, por acaso), mas, no momento em que atacou Serra, FH aceita acusar o governo de anti-democrático: …”quem pode pode e quem não pode se sacode”
O sr. foi surpreendido com o discurso do “nunca antes neste País” do presidente Lula?
De alguma maneira, sim, mas nem tanto. O comportamento do Lula, mesmo no tempo de líder da oposição, sempre foi de uma pessoa loquaz, fácil de apreender as circunstâncias políticas, muito mais tático do que estratégico. Ele falou em “metamorfose ambulante” e isso explica bem o seu estilo e caracteriza bem o seu traço de conservadorismo.
Qual foi, então, a sua grande surpresa com Lula?
Achei que ele fosse mais inovador, capaz de deixar uma herança política democrática, mostrando que o sentimento popular, a incorporação da massa à política e a incorporação social podem conviver com a democracia, não pensar que isso só pode ser feito por caudilhos como Perón, Chávez etc. FH agora está acusando Lula de pretensões caudilhescas. Novamente FH se contradiz. Essa é, aliás, a imagem que o mundo tem do Lula, que ele está incorporando os excluídos – o que já vinha do meu governo, a partir da estabilização econômica, mas é verdade que ele acelerou. MAS LULA ESTÁ A TODO O INSTANTE DESPREZANDO O COMPONENTE DEMOCRÁTICO PARA FICAR NA POSIÇÃO DE CAUDILHO. Como é que é? (A frase é tão importante que até resolvi colocar em caixa alta.) Agora o Lula definitivamente virou caudilho, e “despreza o componente democrático” – coitado do Lula, logo ele, que havia começado tão bem, lá em cima da página.
O que está na origem dessa tentação?
(a pergunta já mostra a confusão em que o entrevistador se meteu por culpa de FH)
Na Europa, já não é mais assim, mas em alguns lugares ainda se acha que acabar com a desigualdade é tudo, que vale tudo para acabar com a desigualdade. Valia até apoiar o regime stalinista, o que Lula nunca foi (nunca foi o que?). O que ele tinha de inovador é que o PT falava de democracia, um lado que está sendo esquecido. Afinal o PT e Lula prezam a democracia, ou não ?Nunca disse uma palavra forte em favor dos direitos humanos. FH está sendo injusto. Está se baseando no episódio cubano e na mulher adúltera do Iran. O PT sempre disse palavras fortíssimas a favor dos direitos humanos. Claro que são as imensas bobagens que conhecemos bem, onde a culpa é sempre nossa pelo comportamento criminoso dos outros. Mas não existe dúvida quanto à postura do PT: Veja-se o Plano para os Direitos Humanos, ou sei lá que nome seja. Pode, perfeitamente, dizer que o caso nuclear do Irã não pode servir para atacar o país, lembrar o Iraque, mas, ao mesmo tempo, tem de ter uma palavra forte em defesa de uma mulher que pode morrer apedrejada. ( FH fala é assim mesmo ?)
O sr. já disse que o governo Lula tem realizações próprias suficientes para não precisar ser “mesquinho” e usar esse “nunca antes neste País”. Por exemplo?
O governo do presidente Lula atuou bem diante da crise financeira mundial (2008/2009). Na posição em que o Brasil se encontrava isso não foi difícil. De fato a atuação do governo ficou praticamente restrita ao Banco Central, que tomou medidas óbvias. Isso não é fruto do passado, é fruto do presente. Nas outras áreas, ele deu bem continuidade(?) mas na crise podíamos ter naufragado e ele não deixou naufragar. Nossa! Eu gostaria muito de saber que medidas o Lula tomou para não deixar o país NAUFRAGAR.
Outro exemplo de bom serviço prestado pelo governo Lula ao País?
Não sei qual a razão, mas o Lula acertou ao não engordar o debate sobre o terceiro mandato. Não sei se está ou não arrependido, mas o certo é que ele não engordou esse debate. (Talvez o episódio Zelaya tenha vindo no momento certo)
Em compensação, entrou na campanha com se estivesse disputando o terceiro mandato.
E não precisava. Ele podia atuar dentro da regras democráticas, mas está usando o poder político para forçar situações eleitorais. Definitivamente Lula não é democrático. Agora FH diz que : “Definitivamente Lula não é democrático“. Há ( obrigado por não haver usado “TEM)”até um movimento em que ele se envolve para derrotar senadores da oposição, parece um ato de vingança porque não gostou da atuação deles no parlamento.
A jornalista e colunista do Estado Dora Kramer falou, há dias, de uma “academia inativa por iniciativa própria”. É isso?
A frase pode ser um pouco forte, tem muito intelectual opinando, mas a academia está muito distante da vida, produzindo análises vazias. Lidam mais com conceitos do que com a realidade. Falam muito sobre livros, em vez de falar e escrever sobre o processo da vida. Houve, sim, um afastamento da academia desses desafios. A situação do País é boa, a começar pela situação econômica e social, e isso paralisa muita gente, mas a academia é que tem de manter o senso crítico, alertar, dizer o que está acontecendo e que merece reparos. FH não percebe que se encaixa perfeitamente no modelo que acabou de criticar. A entrevista é uma prova disso. Provavelmente a Dora tinha na cabeça o FH e outros membros da Oposição quando soltou a frase.
Vejam no blog: “Millor Fernandes desmoraliza o famoso livro de Fernando Henrique” que é uma transcrição de seus comentários sobre FH em “Crítica da Razão Impura”. Sensacional