Hitler e Wagner
Fotos: Claudio Mafra. Reprodução permitida mediante citação dos créditos.Fui assistir “O Crepúsculo dos Deuses”, quando morava em Pequim. Sempre soube da importância de Wagner, mas não imaginava que ele fosse fundamental para um certo nível de cultura que eu penso haver atingido. Sua obra é um posicionamento radical face á vida.
Durante o primeiro ato me sentia frustrado e humilhado por não estar entendendo o enredo. Quando ele chegou ao final foi pior, porque o público sepultou a impressão que eu tinha de que também estava às cegas, e aplaudiu com toda convicção aos gritos de “bravô!”, “bravô!”. Fiquei confuso, estava na China, os chineses não sabem de nada, são o primaz da ignorância, descobriram a vida ontem, e a única certeza deles é a de que precisam ter o mesmo comportamento dos ocidentais. Se alguns europeus vaiassem eles fariam a mesma coisa, mas pensar nisso não me ajudou em nada. Se não fosse um amigo me socorrer no intervalo de 40 minutos, contando toda a história, eu teria ido embora deprimido, sem ver as outras partes. O espetáculo começou às seis da tarde e só terminou depois de meia-noite. Achei uma maravilha. Todo o elenco era alemão, inclusive a orquestra.
Wagner não é apenas um dos grandes compositores de todos os tempos. Ele representa o escapismo, representa uma tendência mundial de trocar a realidade mesquinha da vida pelo sonho, troca-la por outra dimensão estética. Por coincidência terminei no dia seguinte a leitura do primeiro volume de “Hitler”, de Joaquim Fest. No livro monumental o autor detalha a psique alemã para explicar a ascenção ao poder de alguém tão absurdamente diferente – o último dos grandes conquistadores românticos, um dos três ou quatro personagens de maior impacto sobre a humanidade em toda a história universal – o perdedor total e absoluto que deu a maior volta por cima que se tem notícia, e depois voltou de forma tremenda ao ponto inicial, o verdadeiro patrono dos losers, o homem que fez do mundo palco para o exercício de todas as suas convicções, de todas as suas neuroses, e se o marxismo com seu determinismo histórico fosse alguma coisa para ser levada a sério, então ele seria a sua completa desmoralização. E Fest não pode deixar de falar em Wagner, é claro. Nada de anti-semitismo, porque esse aspecto em sua obra é consequência de algo muito mais importante, e afinal de contas os alemães eram menos anti-semitas do que a maior parte dos europeus. (Nesse ponto Hitler não conseguiu galvanizar, manipular – o que aprendemos está errado – e, muito pelo contrário, para ganhar as eleições baixou o tom no ataque aos judeus). Wagner é o anti-político, e queria um governo para “a nova era” que fosse dirigido pelo seu grande “heroi da arte”, pela personalidade “artístico-cesárea do indivíduo”. Hitler se encaixa exatamente nesse contexto.
Estive em Viena seguindo e fotografando os passos de Hitler, no que ele chamou de “o período mais triste de minha vida”. A pensão onde morou: quarto 16 da Stumpergasse, 31, a escola de Belas -Artes onde foi reprovado duas vezes, e o Café Sperl, onde procurava vender suas pinturas. Muito impressionante. Em cada lugar a sensação do sobre-humano. Um rapaz frustrado, faminto, provavelmente sujo, morrendo de frio, esgueirando-se pelas maravilhosas ruas de uma capital imperial. Como conseguiu chegar a ser o homem mais temido do mundo ? É o que dezenas de biógrafos competentes tentam explicar e até hoje não conseguiram. Acho muito eloquente esse trecho de Joachim Fest : ” De fato, a antiga tendência para o abismo intelectual era responsável pelo fato de a crise ter tomado na Alemanha o caráter desesperado e totalmente fechado que fez da necessidade de fugir da realidade um fenômeno coletivo e tornou familiar a todos a ideia de um salto heroico para o deconhecido . É nesse meio ideológico que se deve ver o fenômeno Hitler. Ele dá as vezes a impressão de ser o vulgar produto artístico dessas atitudes e complexos: as aliança entre o pensamento mitológico e o pensamento racional no mais acentuado extremismo dos intelectuais socialmente isolados. Quase todas as figuras retóricas conhecidas da tendência antipolítica aparecem em seus discursos: o ódio contra os partidos, contra o caráter de compromisso do sistema, contra sua falta de grandeza; Hitler sempre via a política como uma noção próxima do destino, incapaz por si mesma e pedindo para ser libertada pelo homem forte, pela arte, ou por um poder superior qualificado de providência. Em um dos importantes discursos durante a tomada no dia 21 de março, ele formulou nestes termos o texto da impotência política, do sonho compensador e da salvação pela arte: “ O alemão debilitado, desagregado, com o espírito dilacerado, a vontade aniquilada, incapaz de agir, perde toda a sua energia para afirmar sua própria vida. Sonha com o direito às estrelas e o chão foge aos seus pés…. Afinal, só restava aos alemães o caminho da vida interior. Esse povo de cantores, de poetas, de pensadores sonhava com um mundo onde viviam os outros, e foi preciso que a dor e a míséria o atingissem de modo desumano para que a arte gerasse o desejo de um novo levante, de um império novo e também de uma nova vida.” E Fest conclui : ” Tendo renunciado aos seus sonhos de artista Hitler via a si próprio sob a aparência desse salvador.”
Nos lugares históricos que visitei não existe uma placa, uma indicação de que Hitler viveu alí, ou o que seja. Os austriacos, mais do que os alemães, possuem um intenso sentimento de vergonha a seu respeito. Muito diferente dos russos, que em número de milhões, ainda veneram Stalin. Na Rússia ainda vemos estátuas de Lenin, Marx, e Felix Dzherzhinsky. A repulsa austríaca é um sentimento claro, inequívoco, perceptivel em seus rostos quando se defrontam com qualquer pergunta sobre os nazistas. Em Berchtesgaden, tentei ver o Ninho da Águia, a espetacular casa de frente para os Alpes, ( Berghof), onde Hitler passava grande parte do tempo, e onde foi celebrado o acordo de Munich. Estava fechada. Perguntei para a moça no café: ” Eu queria ver a casa que Hitler construiu lá em cima”. Ela me respondeu sôfrega: ” Não foi ele quem contruiu! Já estava lá antes dele!” Apegou-se ao pequeno detalhe de que realmente existia antes, mas sem as famosas modificações arquitetônicas que ele introduziu, ou o fato de que anteriomente o lugar não tinha a menor importância.
Para os apaziguadores; os defensores do políticamente correto; os que acreditam que o diálogo tudo resolve; os semi-analfabetos dos ” direitos humanos”; os que se recusam a ver que o terrorismo se combate com a força das armas e que não percebem que estamos perdendo um tempo precioso; para os relativistas e os que nos culpam pelas desgraças do mundo; para os que fazem do multiculturalismo a bandeira da rendição, para todos esses uma observação de Hitler sobre Chamberlain: ” O cãozinho mais ordinário que conheci” . E mais outra, quando conversava com seus chefes militares: ” Nossos inimigos são vermezinhos. Pude vê-los em Munique.”