Egito perdeu a causa palestina (artigo de Alastair Crooke, ex-agente do MI-6)
(Alastair Crooke, ex-agente da Inteligência Britânica)
Incidente da “Frota da Liberdade” mostra que é a Turquia a representante dos interesses palestinos – e não Mubarak
Essa é uma linguagem que não ouvíamos desde a época de (do ditador egípcio) Gamal Abdel Nasser”, escreveu o influente editor-chefe do jornal Al-Quds al-Arabi, referindo-se à resposta virulenta do primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, ao ataque israelense à frota de Gaza. Para ele, posições e retórica tão “viris” haviam “desaparecido dos dicionários dos nossos líderes (desde a morte de Nasser)”. E lamentou que “os regimes árabes representem agora os únicos amigos que restam a Israel”.
Não há dúvida de que Abdel Bari Atwan se referia principalmente ao presidente Hosni Mubarak, do Egito, sucessor de Nasser. E não há dúvida também de que o incidente da frota marca um divisor de águas para o Egito ? e, em menor dimensão, para a Arábia Saudita. Até mesmo o ouvido notoriamente surdo de Mubarak à simpatia do seu próprio povo pela causa palestina em Gaza não poderia deixar de captar o ranger das placas tectônicas da mudança no Oriente Médio. O próprio Mubarak sentiu-se obrigado a responder ao ataque israelense, ordenando a imediata abertura da fronteira egípcia com Gaza.
O que estamos testemunhando é mais um passo- talvez crucial- na mudança do equilíbrio de poder estratégico no Oriente Médio. A causa dos palestinos está gradativamente saindo das mãos de Mubarak e do rei Abdullah da Arábia Saudita. São os líderes do Irã e da Turquia, juntamente com o presidente Bashar Assad, da Síria, que reconhecem os ventos da mudança. Mubarak parece cada vez mais isolado e é considerado o colaborador mais assíduo de Israel. Nessa região, as embaixadas egípcias costumam ser alvo das manifestações populares.
Dinastia em perigo. Os motivos de Mubarak para seu obstinado apoio a Israel são notórios: ele está convencido de que o caminho para obter o sinal verde dos EUA para que seu filho Gamal possa suceder-lhe passa por Tel-Aviv e não por Washington. Mubarak desfruta de um apoio limitado dos Estados Unidos. E, se Washington ignorar seus princípios democráticos e apoiar a jogada em favor de Gamal, será porque Israel afirma que é essencial para a sua segurança que os EUA fechem um olho.
Para conseguir o que pretende, Mubarak trabalhou no intuito de enfraquecer e esvaziar a posição do Hamas em Gaza, e para fortalecer a do presidente palestino, Mahmoud Abbas. Na realidade, ele adotou essa política em detrimento da unidade palestina. A “intermediação” unilateral egípcia para a paz é considerada aqui parte do problema e não de uma solução palestina. Paradoxalmente, é essa posição que permitiu que Turquia e Irã se apoderassem do patrocínio da causa palestina.
Talvez Egito e Arábia Saudita concluam que o preço a pagar pela passagem do bastão da liderança nesta questão fundamental de forte cunho emotivo para as mãos não árabes do Irã e da Turquia é demasiado alto, e demasiado vergonhoso. O ceticismo quase geral em relação ao “processo de paz” entre seus próprios povos já fez com que estes líderes se expusessem demais internamente.
Durante quase 20 anos, esses líderes usaram seu envolvimento no “processo” como justificativa para conter a dissensão interna. Mas agora esse instrumento perdeu sua mágica. Eles já estão pagando o preço do cinismo popular.
O dilema de Mubarak é o seguinte: ficar com o cerco e a esperança de que os EUA o retribuirão com a sucessão de Gamal; mas, ao ir contra os ventos da mudança, ele poderá pôr em risco a própria sobrevivência de Gamal. Em todo caso, o controle do Egito sobre o “dossiê” palestino nunca mais será o mesmo. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
(publicado no Estadão em 5 de junho de 2010)