A Guerra de Guerrilhas e a ocupação da França pelos alemães (Michael Walzer) -vídeos e fotos
(Antes do texto de Michael Walzer vamos ver a descrição do momento da rendição francesa, feita pelo reporter William Shirer, que estava presente no local. Depois temos o vídeo e fotos)
O segundo armistício em Compiègne
Segui o exército alemão em sua entrada em Paris naquele mês de junho, sempre o mais belo dos meses na majestosa capital que agora se motrava desolada. Em 19 de junho, soube por vias indiretas, do local onde Hitler estabeleceria os termos para o armistício que Pétain havia solicitado dois dias antes. Seria o mesmo local onde o império alemão havia capitulado à França e seus aliados, em 11 de novembro de 1918: uma pequena clareira da floresta, em Compiègne. Ali, o chefe nazista teria sua revanche.Viera-lhe essa idéia em 20 de maio, apenas dez dias depois de começada a grande ofensiva no ocidente e no dia em que os tanques alemães atingiram Abbeville. Jodl anotou-no no diário, nessa ocasião: ” O Fuhrer está elaborando o tratado de paz… As primeiras negociações na Floresta de Compiègne”. Ao entardecer do dia 19 de junho, dirigi-me de automovel para lá e encontrei os engenheiros do exército alemão demolindo a parede do museu onde haviam conservado o velho vagão dormitório do marechal Foch, no qual havia sido assinado o armistício de 1918 * ( eu acho estranho porque no vídeo aparece o nome restaurant no vagão. CM). Na ocasião em que saí, os engenheiros, trabalhando com brocas pneumáticas, já haviam demolido o muro e estavam puxando o vagão para os trilhos, no centro da clareira, para o lugar exato- disseram eles- em que estivera às 5 horas da manhã do dia 11 de novembro de 1918 quando, ditados por Foch, os emissários alemães apuseram suas assinaturas no termo do armistício.
E foi assim que, à tarde do dia 21 de junho, me quedei à orla da floresta, em Compiègne, a fim de observar o mais recente e o maior dos triunfos de Hitler, dos quais, no decurso de meu trabalho, vi tantos nesses últimos e turbulentos anos. Foi um dos mais belos dias de verão que me lembro ter visto na França. Um sol quente de junho batia sobre as majestosas árvores- olmos, carvalhos, ciprestes e pinheiros- lançando sombras agradáveis sobre as avenidas arborizadas que conduziam à pequena clareira circular. Precisamente às 3:15 da tarde, Hitler chegou em seu grande automóvel Mercedes, acompanhado de Goering, Brauschitsch, Keitel, Raeder, Ribbentrop e Hess, todos em seus vistosos uniformes; Goering, o único marechal-de campo, brincava com o bastão nas mãos. Desceram dos automoveis a umas duzentas jardas, defronte ao monumento da Alsácia-Lorena, coberto de bandeiras alemãs, a fim de que o Fuhrer não visse a grande espada ( se bem que dela eu me lembrasse de visitas anteriores, feitas em dias mais felizes), a espada dos aliados vitoriosos de 1918 espetada numa águia derrotada, que representava o império alemão dos Hohenzollerns. Hitler lançou um olhar para o monumento e prosseguiu em seu caminho.
Observei-lhe o rosto (escrevi em meu diário). Grave, solene, porém cheio de vingança. Havia também nele, assim como nos passos ligeiros, um ar de conquistador triunfante, de desafiador do mundo. Havia algo mais… uma espécie de desprezo, uma alegria interior de se achar presente àquela grande reviravolta do destino- uma reviravolta que ele mesmo elaborara.
Quando chegou à pequena clareira, na floresta, e sua bandeira pessoal foi içada no centro, sua atenção foi atraída por um grande bloco de granito que se erguia a uns três pés do solo.
Hitler, seguido dos demais, caminhava vagarosamente em direção dele – estou transcrevendo meu diário – sobe nele e lê a inscrição gravada (em francês) em grandes letras: “AQUI, EM ONZE DE NOVEMBRO DE 1918, CAIU O ORGULHO CRIMINOSO DO IMPÉRIO ALEMÃO – VENCIDO PELOS POVOS LIVRES QUE ELE PROCUROU ESCRAVIZAR”.
Hitler a lê e Goering também a lê. Todos eles a lêem ali, de pé, sob o sol de junho e em meio ao silêncio reinante. Procuro ver a expressão no rosto de Hitler. Estou a apenas cinquenta jardas dele e vejo-o através de meu binóculo como se o estivesse vendo bem diante de mim. Já vi esse rosto muitas vezes nos grandes momentos de sua vida. Mas, nesse dia! Está fremente de desprezo, ira ódio, vingança e triunfo.
Ele desce do monumento e esforça-se por fazer até com esse gesto uma obra-prima de desprezo. Vira o rosto e lança-lhe um olhar, um olhar de desprezo rancoroso- quase se lhe percebe o rancor, porque não pode apagar aquelas letras terriveis e provocantes com um movimento de sua alta bota prussiana ( Fizeram-no ir pelos ares três dias depois, por ordem de Hitler). Relanceia vagarosamente o olhar em volta da clareira e agora, ao encontrarem seus olhos os nossos, pode-se perceber a profundeza de seu ódio.
Mas um ar de triunfo- um ar vingativo e de ódio triunfante — via-se tambem nele. Subitamente, como se seu rosto não estivesse concretizando inteiramente seus sentimentos, lança todo o corpo em harmonia com sua disposição de espírito. Coloca rapidamente as mãos na cintura, arqueia os ombros e queda-se com os pés separados. É um majestoso gesto de desafio, de ardente desprezo por esse lugar, agora, e por tudo que representou nos vinte anos que decorreram desde que foi testemunha da humilhação do império alemão.
Hitler e seu grupo entraram em seguida no vagão do armistício, sentando-se o próprio Fuhrer na cadeira que Foch ocupou em 1918. Cinco minutos depois chegava a delegação francesa, dirigida pelo general Charles Huntziger, comandante do Segundo Exército em Sedan, e formada por um almirante, um general da força aérea e um civil, Léon Noel, o antigo embaixador na Polônia, que agora testemunhava a segunda queda que lhe causavam as armas alemãs. Pareciam acabrunhados, mas mantinham uma trágica dignidade. Não os haviam informado que seriam conduzidos àquele alto escrínio francês para sofrer tal humilhação, e o choque foi, sem dúvida, o que Hitler calculara. Conforme o general Halder escreveu em seu diário nessa noite, depois que o general Brauchitsch lhe contou o que presenciara,
os franceses não tinham sido prevenidos de que receberiam os termos do armistício no próprio local das negociações em 1918. Parecia terem ficado abalados por esse arranjo e, a princípio mostraram-se taciturnos.
Talvez fosse natural, mesmo para um alemão tão culto como Halder, ou Brauchitsch, confundir uma dignidade solene com taciturnidade. Os franceses – percebia logo – estavam certamente aturdidos. Contudo, contrariamente às informações da época, procuraram – conforme sabemos agora pelas minutas oficiais dos alemães sobre as conferências, encontradas entre os documentos secetos aprendidos aos nazistas – suavizar as partes mais duras dos termos propostos pelo Fuhrer e eliminar as que julgavam desonrosas. Tentaram-no em vão.
Hitler e seu grupo retiraram-se do vagão dormitório, assim que o general Keitel leu o preâmbulo dos termos do armistício aos franceses, deixando as negociações a cargo do chefe da OKW, sem lhe dar, porém, margem para afastar-se das condições que ele mesmo havia traçado.
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RESISTÊNCIA Á OCUPAÇÃO MILITAR
A surpresa é a característica essencial da guerra de guerrilhas, sendo a emboscada, portanto, a tática clássica da guerrilha. Naturalmente ela é também uma tática na guerra convencional. A ocupação e camuflagem envolvidas, embora no passado fossem repudiadas por oficiais e cavalheiros, já há muito são consideradas formas legítimas de combate. Existe, porém, um tipo de emboscada que não é legítimo na guerra convencional e que ilumina com nitidez as dificuldades morais que os guerrilheiros e seus inimigos costumam enfrentar. Trata-se da emboscada preparada por trás de um disfarce político ou moral em vez de natural. Um exemplo é o do capitão Helmut Tausend, do exército alemão, no documentário de Marcel Ophuls Tje Sorrow and the Pity. Tausend relata o caso de um pelotão de soldados em marcha pelo interior da França durante os anos da ocupação alemã. Eles passaram por um grupo de rapazes, camponeses franceses, ou essa era a impressão que davam, ocupados a colher batatas. Mas na realidade não se tratava de camponeses. Eram membros da Resistência. Quando os alemães passaram por eles, os “camponeses” largaram as pás, apanharam armas que estavam ocultas no campo e abriram fogo. Quatorze soldados foram atingidos. Anos depois, seu capitão ainda estava indignado. “E isso vocês chamam de resistência por ‘maquis’? Eu não. Maquis para mim são homens que podem ser identificados, homens que usam uma braçadeira especial ou um boné, algo que nos permita reconhecê-los. O que aconteceu naquele batatal foi assassinato.”
O argumento do capitão referente a braçadeiras e bonés é simplesmente uma citação direta da lei internacional da guerra, das convenções de Haia e de Genebra.É importante frisar primeiro que os maquis nesse caso tinham adotado um duplo disfarce. Eles estavam disfarçados de camponeses pacíficos e também de franceses, ou seja, cidadãos de um Estado que se havia rendido, para o qual a guerra estava encerrada (da mesma forma que guerrilheiros numa luta revolucionária se fazem passar por civis desarmados e também por leais cidadãos de um Estado que não está em guerra de modo algum). Foi por causa desse segundo disfarce que a emboscada foi tão perfeita. Os alemães acreditavam que estavam numa zona de retaguarda, não na frente de combate, e por esse motivo não estavam preparados para a batalha; não eram precedidos por um grupo de reconhecimento; não suspeitaram dos rapazes no campo. A surpresa obtida pelos maquis foi de um tipo praticamente impossível numa situação real de combate. Ela derivou do que se poderia chamar de aparência protetora propiciada por uma rendição nacional, e seu efeito foi obviamente o de erodir os entendimentos morais e legais em que se embasa a rendição.
A rendição é um contrato explícito e uma troca: o soldado como indivíduo promete parar de lutar em troca de guarida humanitária por quanto tempo a guerra ainda durar; um governo promete que seus cidadãos deixarão de lutar em troca da restauração da vida pública normal. As exatas condições da “guarida humanitária” e de “vida pública” estão nos livros de direito. As obrigações dos indivíduos também estão especificadas: eles podem tentar fugir do campo de prisioneiros ou escapar do território ocupado. Se tiverem êxito na fuga ou escapada, estarão livres para voltar a lutar, por terem recuperado seus direitos de guerrear. Não podem, entretanto, resistir à prisão ou à ocupação. Se um prisioneiro de guerra matar um guarda durante a fuga, esse ato é um homicídio. Se os cidadãos de um país derrotado atacarem as autoridades responsáveis pela ocupação, o ato tem, ou teve no passado, um nome ainda mais sinistro: é, ou era, “traição em tempos de guerra” (ou “rebelião em tempos de guerra”), um descumprimento da lealdade política, punível, como a traição comum de rebeldes e espiões, com a morte.
No entanto, “traidor” não parece ser o termo correto para descrever aqueles maquis franceses. Na realidade, foi exatamente a experiência deles, bem como a de outros combatentes que recorreram à guerrilha na Segunda Guerra Mundial, que levou praticamente ao desaparecimento da expressão “traição em tempos de guerra” dos livros de direito e da idéia de descumprimento de voto de lealdade de nossos debates morais sobre a resistência em tempos de guerra (além da rebelião em tempos de paz, quando dirigida contra um domínio estrangeiro ou colonizador). Hoje em dia, temos a tendência de negar que os indivíduos estejam automaticamente subordinados às decisões de seu governo ou ao destino de seus exércitos. Agora conseguimos entender a dedicação moral que eles podem sentir para defender sua terra natal e sua comunidade política, mesmo depois que a guerra esteja oficialmente encerrada. Afinal de contas, um prisioneiro de guerra sabe que a luta continuará apesar de sua captura; seu governo está firme; seu país ainda está sendo defendido. Depois de uma rendição nacional, porém, o caso é outro. E, se ainda houver valores que mereçam ser defendidos, ninguém poderá defendê-los, a não ser homens e mulheres, cidadãos sem nenhuma importância política ou legal. Imagino que seja um consenso geral quanto à existência, ou à freqüente existência, desses valores que nos leve a atribuir a esses homens e mulheres uma espécie de autoridade moral.
Contudo, embora essa concessão reflita sensibilidades democráticas novas e valiosas, ela também levanta sérias questões. Pois, se os cidadãos de um Estado derrotado ainda tiverem o direito de lutar, qual é o significado da rendição? E que obrigações podem ser impostas a exércitos conquistadores? Não pode haver vida pública normal em território ocupado se as autoridades encarregadas da ocupação estiverem sujeitas a ataque a qualquer instante e pelas mãos de qualquer cidadão. E a vida normal é um valor também. É por ela que a maioria dos cidadãos de um país derrotado mais anseia. Os heróis da resistência põem em risco essa vida normal, e nós devemos avaliar os riscos que eles impõem a outros para poder entender os riscos que eles próprios devem aceitar. Além do mais, se as autoridades realmente pretenderem a restauração da paz cotidiana, elas supostamente teriam o direito de gozar da segurança que proporcionam.. Devem, portanto, ter o direito de considerar a resistência armada uma atividade criminosa. Logo, a história pela qual comecei poderia ter o seguinte final (no filme, ela não tem final): os soldados sobreviventes reúnem-se e rechaçam o ataque. Alguns dos maquis são capturados, julgados por assassinato, condenados e executados. Não acrescentaríamos, creio eu, essas execuções à lista dos crimes de guerra dos nazistas, Ao mesmo tempo, não no uniríamos à condenação.
A situação pode, portanto, ser resumida como se segue: a resistência é legítima, e a punição da resistência é legítima. Isso pode parecer um simples empate e uma abdicação do julgamento ético. Na realidade, trata-se de uma reflexão precisa sobre as realidades morais da derrota militar. Desejo salientar mais uma vez que nosso entendimento dessas realidades não está de modo algum relacionado com nossa opinião sobre os dois lados. Podemos condenar a resistência, sem chamar de traidores os guerrilheiros; podemos odiar a ocupação, sem chamar de crime a execução dos guerrilheiros. Se alterarmos a história ou a ela acrescentarmos algo, naturalmente o caso muda. Se as autoridades encarregadas da ocupação não cumprirem suas obrigações previstas no acordo de rendição, perderão seus direitos. E, uma vez que a luta de guerrilha tenha atingido certo ponto de seriedade e intensidade, podemos concluir que a guerra de fato foi retomada, que uma declaração foi feita, que a frente de combate foi restabelecida (mesmo que não se trate de uma linha verdadeira),e que os soldados não tenham mais direito de se surpreender mesmo com um ataque-surpresa. Nesse caso, os guerrilheiros capturados pelas autoridades deverão ser tratados como prisioneiros de guerra — desde que eles mesmos tenham lutado de acordo com as convenções de guerra.
Entretanto, guerrilheiros não lutam desse modo. Sua luta é subversiva não apenas com referência à ocupação ou a seu próprio governo, mas também com referência às convenções de guerra em si. Quando usam trajes de camponeses e se escondem em meio à população civil, eles desafiam o princípio mais fundamental das normais de guerra. Pois é o objetivo dessas normas especificar para cada indivíduo uma única identidade: ou bem ele é soldado ou bem ele é civil. O Manual da guerra militar de origem britânica prova esse ponto com uma clareza notável: “Essas duas classes têm privilégios, deveres e limitações distintas… um indivíduo deve escolher sem ambigüidade pertencer a uma classe ou a outra, e não lhe será permitido gozar dos privilégios das duas. Em especial… não será permitido a um indivíduo matar ou ferir membros do exército da nação adversária e subseqüentemente, se for capturado ou se estiver correndo risco de vida, querer fazer-se passar por cidadão pacífico.” É isso, porém, o que os guerrilheiros fazem, ou fazem às vezes. Podemos, assim, imaginar outra conclusão para a história do ataque dos maquis. Os maquis conseguem livrar-se, vão para casa, dispersando-se, e se ocupam com suas atividades normais. Quando chegam ao lugarejo naquela noite, tropas alemãs não conseguem distinguir os guerrilheiros de qualquer outro morador. O que fazem nessas circunstâncias? Se, através de buscas e de interrogatórios — trabalho de policial, não de soldado —, eles capturarem um dos maquis, deverão tratá-lo como um criminoso capturado ou como um prisioneiro de guerra (deixando agora de lado os problemas da rendição e da resistência)? E se não capturarem nenhum, poderão punir o lugarejo inteiro? Se os maquis não preservam a distinção entre soldados e civis, por que os alemães deveriam preservá-la?
Para uma valiosa resenha da situação legal, veja Gerhard Von Glahn, The Occupation of Enemy Territory (Mineápolis, 1957).
Veja W. F. Ford, “Resistance Movements and International Law”, 7-8 International Review of the Red Cross (1967_1968 e G. I. A. D. Draper, “The Status of Combatants and the Questiono f Guerrilla War”, 45 British Yearbook of International Law (1971.