O Grande General Pinochet (Margaret Thatcher)

O CASO PINOCHET

Só vim a conhecer o General Pinochet quando já tinha deixado de ser Presidente do Chile. Mas, muito antes, já mantivera contato indireto com ele, por ocasião da Guerra das Falklands, em 1982. Na época, o Chile nos proporcionou preciosas ajuda e estou convencida de que, sem ela, muitos outros militares nossos teriam perdido suas vidas.

O apoio mais importante foi no campo da inteligência, contribuindo com informações. A Força Aérea chilena nos alertou regularmente sobre os ataques aéreos argentinos. Só mais tarde tomei conhecimento de um detalhe doloroso. Quase ao final do conflito, um radar chileno de longo alcance teve de ser desativado por 24 horas para sofrer manutenção inadiável. O resultado foi uma tragédia. Naquele mesmo dia, uma terça-feira, 8 de junho, a Força Aérea argentina atacou com êxito e destruiu os navios de desembarque Sir Galahad e Sir Tristram, causando pesadas baixas.

Todo o apoio recebido pela Inglaterra foi autorizado secretamente pelo Presidente Pinochet. Obviamente, a ajuda prestada pelo Chile não foi simples conseqüência da tradicional simpatia chilena pela Inglaterra, que, apesar de tudo, era e continua a ser verdadeira. Na época, o próprio Chile estava sob ameaça da vizinha e mais poderosa Argentina. Dessa forma, se a Inglaterra derrotasse a Argentina, o Chile se beneficiaria. A verdade é que o Presidente Pinochet assumiu considerável risco. Afinal, nós podíamos ter sido derrotados.

Sou grata ao presidente chileno e ao Chile, sentimento que, mais tarde, influiu na posição que assumi quando o ex-presidente Pinochet estava em dificuldades. Mas fui movida por mais do que simples gratidão. É importante para uma nação preservar a confiança de seus aliados. Nesse sentido, estados não são como pessoas, Se você tem reputação de receber favores e não retribuí-los, os favores acabam. Uma potência de nível médio e interesses de âmbito global, como a Inglaterra, precisa de aliados em todas as regiões. A permanente incerteza do continente a respeito das intenções argentinas em relação às Ilhas Falklands ilustra perfeitamente essa afirmação.

Também vale a pena tentar esclarecer outro entendimento equivocado sobre minha atitude em relação ao atualmente Senador Pinochet. Às vezes sugerem que ignorei as violações de direitos humanos de que ele era acusado e que o apoiei apenas pelo que fizera pela Inglaterra durante a Guerra das Falklands. Não sei como teria me sentido se achasse que ele era culpado por graves crimes. Ainda teria considerado sua prisão um erro, pela forma como foi conduzida, pelas conseqüências para a Inglaterra e para o Chile e pelo perigoso precedente que estabeleceu. Mas nunca tive de lidar com esse problema porque, embora nunca pudesse me certificar de cada detalhe da acusação, estava e estou convencida de que foi graças à ação do General Pinochet que o Chile se transformou no país próspero e livre que vemos hoje.

Esse não é o lugar apropriado para analisar detidamente o que aconteceu no Chile nas décadas de 1970 e de 1980. Mas mantenho o que afirmei em meu discurso, em concorrida reunião, por ocasião da convenção do Partido Conservador em Blackpool, na quarta-feira, 6 de outubro de 1999. Resumi em uma frase a real acusação que se fazia ao General Pinochet: “O que a esquerda  não pode perdoar é que Pinochet, sem sombra de dúvida, salvou o Chile e ajudou a salvar a América do Sul.”

Mas também tentei avaliar as provas com isenção à medida que isso foi possível e, na época em que proferi aquele discurso, já tinha me debruçado sobre muitos pormenores. Como o próprio General Pinochet livremente reconheceu, tinham acontecido violações de direitos na esteira do golpe militar de setembro de 1973. E alguns continuaram a ocorrer. Entretanto, a exata  responsabilidade pelo que acontecera só poderia ser definida no Chile e não na Inglaterra. Pinochet, como outros membros da junta militar, tinha, na época, a responsabilidade política. Mas existe uma grande diferença entre responsabilidade política e responsabilidade criminal, detalhe convenientemente ignorado. Um chefe de governo — qualquer chefe de governo — deve aceitar uma grande parcela de responsabilidade política pelo que sucede quando ele ou ela ocupa o cargo. Mas isso não quer dizer que deva aceitar a responsabilidade criminal por tudo que tenha acontecido, autorizado ou não, negligenciado ou não, com ou sem seu conhecimento. Se não fosse assim como assinalei em Blackpool, o primeiro-ministro e o ministro do Interior ingleses teriam de aceitar a responsabilidade criminal por tudo que ocorresse em cada prisão ou delegacia policial em todo o Reino Unido e teriam de ser extraditados para a Espanha com o intuito de responder por isso.

Na verdade, embora envolvesse algumas armadilhas jurídicas, obviamente a ação movida contra o Senador Pinochet na Inglaterra tinha fundamento político, de modo que exigia, pelo menos em parte, uma resposta política. Assim, recordei para os que me ouviam importantes e notáveis realizações do governo de Pinochet, tais como salvar o Chile do coletivismo caótica para transformá-lo em exemplo de economia na América Latina. Lembrei-os também que, graças a seu governo, os chilenos dispunham de habitação decente, a assistência de saúde fora aperfeiçoada, a mortalidade infantil declinara, a expectativa de vida crescera e tinham sido executados programas eficazes contra a pobreza. Acima de tudo, para contrabalançar toda aquela conversa de “ditadura” de Pinochet, ressaltei que fora ele quem promulgara uma constituição que levou o país de volta à democracia, quem se submeteu a um referendo popular para saber se devia ou não permanecer no poder e quem, tendo sido derrotado por pequena margem, respeitou o resultado e transmitiu o poder a seu sucessor eleito.[1]

Continuo a considerar esses argumentos suficientes para uma avaliação positiva do trabalho do General Pinochet. Também os acho suficientes para uma avaliação negativa do tratamento político e judicial que veio a receber na Inglaterra.

Entre os incidentes de maior relevo que cercaram esse extraordinário e vergonhoso evento — incidentes repletos de terríveis implicações futuras —, enumero os seguintes:

  1. O Senador Pinochet estava na Inglaterra com passaporte diplomático, como embaixador especial de seu país.
  2. Até sua prisão em uma clínica de Londres, por volta da meia-noite da sexta-feira, 16 de outubro de 1998, em nenhum instante fora alertado que estava sob ameaça de prisão. Na verdade, a embaixada chilena foi ludibriada pelo Ministério de Relações Exteriores sobre a prisão iminente.
  3. O mandado de prisão utilizado para detê-lo foi ilegal, como foi posteriormente decidido pelo tribunal. O general ficou ilegalmente detido por seis dias por conta desse mandado.
  4. A Promotoria de Justiça da Coroa Britânica colaborou com o magistrado espanhol responsável pelo primeiro mandado, que originou o seguinte.
  5. O magistrado espanhol inicialmente fez acusações tão ridículas ao Senador Pinochet que logo tiveram de ser retiradas. Por exemplo, acusou-o de “genocídio”.
  6. O tribunal inglês decidiu por unanimidade que o senador, na condição de antigo chefe de Estado, gozava de imunidade diplomática. Mas, no julgamento em grau de recurso, a maioria da comissão dos Law Lords[2] decidiu que ele não fazia jus à imunidade. Com um desses juízes tendo deixado de declarar-se suspeito para o julgamento por ser parte interessada, pela primeira vez, uma decisão dos lordes teve de ser anulada. Após nova sessão, quando reexaminaram o caso, os lordes chegaram a uma decisão completamente diferente, ou seja, o Senador Pinochet realmente gozava de imunidade para crimes de tortura, mas apenas até a data em que a Inglaterra aderira à Convenção sobre Tortura, em 1988.
  7. Esse julgamento, em que foi atribuído à convenção um significado inédito, que violou a imunidade diplomática, tornou admissível apenas um dos libelos dirigidos ao Senador Pinochet pelas autoridades da promotoria inglesa — e não se tratava da acusação de tortura (na acepção normal do termo), mas de brutalidade policial.
  8. Determinado a não desistir, o magistrado espanhol responsável pelas acusações quase imediatamente transmitiu para a Inglaterra, via fax, novas acusações produzidas por “organizações de direitos humanos” e que ele evidentemente não tivera tempo ou vontade de examinar com a devida profundidade.
  9. Em nenhum momento desses procedimentos, as provas tiveram seu mérito considerado pelos tribunais ingleses. Tampouco foi concedido ao Senador Pinochet o direito de defesa, porque, pelos termos da Lei de Extradição de 1989, que vinculava a lei inglesa à Convenção Européia sobre extradição, o caso só poderia ser julgado na Espanha.

10. Era mínima a probabilidade de o Senador ter um julgamento imparcial na Espanha e não apenas porque inúmeras pessoas que poderiam testemunhar em favor não ousassem botar os pés nesse país, diante do risco de se verem ameaçadas de prisão. Segundo o acórdão dos lordes, de 24 de março de 1999, nenhuma das acusações pelas quais era pedida a extradição do Senador Pinochet para aEspanha envolvia espanhóis. Todos os crimes alegados teriam sido cometidos por chilenos, contra chilenos, no Chile. Mas os tribunais espanhóis continuaram a insistir na tese da “jurisdição universal” para esse tipo de crimes.

Como é do conhecimento de todos, as tensões decorrentes do período em que esteve detido agravaram a saúde do Senador Pinochet. Pouco antes de sua detenção ele estivera em minha casa para um chá. Mais tarde, visitei-o duas vezes na modesta casa alugada no condomínio Wentworth, na periferia de Londres, onde era mantido sob severa vigilância. Nos primeiros dias não lhe permitiam nem mesmo caminhar pelo gramado na frente da casa. Dessa forma, pude testemunhar os efeitos dos momentos difíceis que atravessou.

Todavia, devo assinalar que nele nunca notei qualquer traço de amargura. Acusava o governo trabalhista da Inglaterra, mas sempre ressalvava que não se pode julgar uma nação por seus políticos. Sempre se comportou com absoluta dignidade.

O Senador Pinochet foi finalmente autorizado a regressar ao Chile por ter sido considerado incapaz de enfrentar um julgamento, conforme parecer médico. Enquanto a aeronave chilena permanecia na pista prestes a partir, presenteei-o com uma salva de prata da Armada. Compreensivelmente, os chilenos sabem mais a respeito das batalhas travadas com os espanhóis ao longo de sua história do que sobre as nossas, de modo que anexei uma breve nota explicativa ao presente. Dizia:

“Espero que no instante em que ler esta carta esteja em segurança a caminho do Chile. Sua detenção na Inglaterra foi uma grande injustiça que nuca deveria ter acontecido.

Com seu retorno ao Chile, a tentativa espanhola de colonialismo judicial foi decisivamente — e de uma vez por todas, espero — frustrada. Para comemorar o acontecimento, essa carta é acompanhada por uma salva de prata da Armada. Essas salvas foram fabricadas na Inglaterra para celebrar uma outra vitória sobre a Espanha, nosso triunfo naval contra a Esquadra espanhola de 1588. Estou certa de que apreciará o presente pleno de simbolismo!”

Fiquei muito alegre quando soube que os espanhóis — que ainda sofrem de um complexo de inferioridade quando se trata de batalhas navais — ficaram furiosos e seu ministro de Relações Exteriores, apoplético. Sem dúvida, eu tinha marcado minha posição.

De volta ao Chile, por algum tempo o Senador Pinochet continuou sujeito ao que me pareceu uma perseguição política e judicial, embora eu não esteja em condições de avaliar todos os pormenores da questão. Espero que, agora, o bom senso e a compaixão prevaleçam. Seja qual for o lado negro daqueles anos, os chilenos têm muito o que agradecer ao Senador Pinochet. Creio que a maioria tem plena consciência disso.

Os ativistas de direitos humanos e os políticos esquerdistas conseguiram sucesso em um aspecto: o impacto provocado pelo caso Pinochet continua se expandindo. De fato, os efeitos iniciais já são evidentes, à medida que são feitas mais e mais tentativas para usar os mecanismos de uma justiça internacional a fim de criar ameaças ou dificuldades para homens públicos antigos e da atualidade.[3]

Estamos realmente ingressando em uma nova era, em que as bases para os tradicionais procedimentos dos estados-nação na condução de seus negócios estão sofrendo uma reviravolta. O permanente ataque que hoje em dia se faz contra o conceito de imunidade diplomática pode provocar aplausos por parte daqueles que nunca esperam servir a seu país em elevados cargos ou assumir responsabilidades por sua nação em momentos de crise. Mas os líderes dessas manifestações devem se lembrar que o fundamento da imunidade diplomática não é proteger homens públicos que cometeram crimes graves, mas proteger os que se vêem obrigados a autorizar ou tomar iniciativas controversas contra acusações baseadas em motivações políticas, em tribunais de países estrangeiros e inamistosos. As conseqüências da remoção ou atenuação da imunidade será fazer com que os líderes sejam mais relutantes ao tomar decisões importantes, particularmente se podem causar a ira da esquerda internacional organizada. A Convenção sobre a Tortura, cujos dispositivos foram distorcidos por promotores e juízes a fim de enredar o Senador Pinochet, pode, ao final das contas, ser aplicada a muitos outros casos. Em 1999, a Anistia Internacional, por exemplo, denunciou casos de tortura ou maus-tratos por parte de forças de segurança, polícia ou outras autoridades de Estado em 132 países, incluindo França, Espanha e Bélgica.[4]

Não menos preocupante, contudo, é que o caso Pinochet evidenciou a falta de escrúpulo de autoridades judiciárias e políticas, quando a legislação internacional oferece uma oportunidade para avançarem no rumo de seus objetivos doutrinários. Essas pessoas, obviamente, não se vêem na mesma situação. Pensam que são paladinos de um novo mundo e é justamente essa convicção que os faz tão perigosos. Esquerdistas fanáticos muitas vezes estão dispostos a atropelar a legalidade e noções básicas de justiça, pensando que podem escapar impunes. Para eles, os fins sempre justificam os meios. Foi dessa forma que seus antecessores criaram os gulags.

Temos de reagir urgentemente se desejamos impedir a total erosão do que tradicionalmente entendemos como primado da lei. E devemos nos dispor a defender, como princípio fundamental, a prevalência da justiça nacional sobre a internacional.

Aqui na Inglaterra, devemos:

  • Reformar a Lei da Extradição, a fim de assegurar que aquilo que a constituição norte-americana chama de “digno de crédito e confiança” não mais seja automaticamente aplicado a pedidos de extradição feitos por tribunais de países (como a Espanha no caso do Senador Pinochet), onde não se pode garantir um julgamento justo.
  • Avaliar cuidadosamente a finalidade da legislação sobre imunidade diplomática e legislar de acordo, em vez de deixar que tais questões sejam decididas por juízes com base na duvidosa ciência do direito consuetudinário internacional.
  • À luz de decisões judiciais com base na Convenção de Tortura, examinar que riscos inaceitáveis podem ser apresentados por outras convenções internacionais, tendo em vista o processo de defesa de nossos interesses.

Quanto aos Estados Unidos, proponho, com toda convicção:

  • Que se afastem do Tribunal Criminal Internacional e exerçam a máxima pressão para que outros países façam o mesmo.
  • Que usem todo o seu poder para se opor a novas tentativas de suprimir a imunidade diplomática ou de invocar jurisdição universal sobre4 questões que devem ser submetidas a decisões democráticas e tribunais nacionais

Fonte: THATCHER, Margaret – A arte de Governar, Biblioteca do Exército Editora, 2005


[1]O Presidente Pinochet obteve 43% dos votos no referendo. Esse resultado nada fica a dever quando comparado aos 44,4% dos votos obtidos pelo Partido Trabalhista de Tony Blair na eleição geral de maio de 1997 na Inglaterra e aos 40,7% que obteve em 2001.

[2] N.T. – Comissão que funciona na Câmara dos Lordes como tribunal de recurso em instância final, nesse aspecto equivalendo ao Supremo Tribunal Federal brasileiro. Hoje em dia, limita-se a julgar apelações de sentenças exaradas por tribunais inferiores. Em futuro próximo, por reforma constitucional, suas atribuições serão transferidas para um novo “Supremo Tribunal do Reino Unido”, a ser criado.

[3] A Bélgica, com sua defesa da jurisdição universal, na verdade se transformou em uma área que não pode ser visitada por homens públicos do mundo contra os quais possa ser apresentada alguma acusação. Em julho de 2001, o Primeiro-Ministro Ariel Sharon, de Israel, cancelou uma visita a Bruxelas depois de ser acusado de crimes por um grupo palestino. Daily Telegraph, 3 de julho de 2001.

[4] Relatório Anual da Anistia Internacional, ano 2000.

8 setembro, 2010 às 19:09

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Categoria: Artigos

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