A respeito da posição dos liberais brasileiros e a demonização do governo Bush

 

Meu caro,

Vou tentar dizer alguma coisa. Eu não sei quase nada sobre teorias. Não posso dizer com precisão quais foram os iniciadores de um pensamento aqui e ali, e que ramificações, dissidências, e oposição, aconteceram. Infelizmente meu instrumento para analisar o que está acontecendo é a História, a que aprendi na escola, o que continuo aprendendo, e a que foi vivida por mim com enorme intensidade emocional, o que considero um complemento indispensável para o conhecimento intelectual.

As pessoas a quem você se refere, criaram teorias, ou as aceitaram e, chegando ao poder, são rotuladas pela escolha que fizeram. Mas, no caso presente – seu e-mail – as doutrinas, ou estratégias de poder não diferem entre si de uma maneira radical como o fundamentalismo judaico- cristão versus a teoria das espécies. Acho que são sutis, e podem ser muito instigadoras, muito estimulantes para os estudiosos, para os profissionais, mas não acredito que estejam funcionando nos USA da forma como o artigo apresenta.

Agora eu vou dizer o “óbvio” entre aspas porque é a maneira como entendo a política americana. Peço um pouquinho de paciência. As subdivisões contidas na grande chave democratas – republicanos as vezes desaparecem, e as vezes são mais fortes, como no momento que vivemos. Refiro-me ao surgimento dos neoconservadores. O que permanece constante são os democratas, ou liberais, que defendem uma maior participação do estado para garantir uma vida melhor para os pobres, e os republicanos que acreditam que essa vida melhor consegue-se exatamente pela menor interferência do governo. Da mesma forma que o impacto da bolsa-família do Lula, os democratas á primeira vista são generosos, estão com o futuro ao seu lado, e por isso mesmo têm o apôio da esquerda em todo o mundo. Eles são os “bons”.Os republicanos contam na maioria das vezes apenas com a maioria silenciosa dentro dos Estados Unidos. Na comunidade internacional ele são estigmatizados como reacionários, são os “maus”. Da mesma forma que o PT, ou como nós mesmo fomos em nossa juventude, os democratas são mais enérgicos, mais ágeis, mais intelectualizados, mais atuantes, sua auto-crítica é mínima, sua argumentação pode ser desonesta porque não se incomodam se é fato ou desejo. Por um fenômeno que nos afeta no dia a dia, um fenômeno psíquico, ( não cabe analisar) os republicanos historicamente, ( pelo menos a partir de 1945) ficaram na defensiva. Continuam na defensiva. Por natureza são mais contidos, são mais aristocráticos, e estão sempre se explicando. Quando erram são crucificados. Os democratas, exatamente como a esquerda, como o PT, passam esplendidamente por cima dos erros e vão em frente.

Eu acho que a maneira como foi levada a invasão do Iraque, a maneira como tem sido mantida a guerra, nada tem a ver com o fato do Bush ser neoconservador, com o Paul Wolfwitz ser um teórico, Rumsfeld ser outro expoente do neoconservadorismo, etc. Isto tem muito mais importância para os acadêmicos do que o que está acontecendo de fato. Este é um ponto grande de discordância entre nós, e muito natural, sendo você um cientista político. Rumsfeld é figura antiga na política americana. Participou de vários governos, desde os trinta anos de idade. Da maneira como tem sido colocado parece que ele surgiu em um passe de mágica do neoconservadorismo. Eu já disse, ele aprovou um plano militar muito bem feito, o do general Meyers, ganhou a guerra com esse plano e depois tentou a vitória na ocupação. Acho que houve pouco tempo, pouco espaço para qualquer opção teórica. Administrou levando em conta o poder militar, a experiência americana, e a grande disposição dos democratas por não perderem um excepcional momento para lucrar com as dificuldades do governo, no momento em que elas aparecessem. Ele foi derrubado por esse último fator. Eu o considero brilhante, suas entrevistas são antológicas

Você tem toda a razão quando diz que um plano (ou uma teoria) envolve o conhecimento da sociedade americana, de que maneira ela funciona, envolve saber qual a reação dessa sociedade nas dificuldades. (Mas isso não impede um juízo de valor, o meu juízo de valor, que considera a oposição democrata anti-patriota, imoral). Mas, o que é o cerne da questão é que eu discordo de que tenha havido qualquer coisa diferente do que estamos acostumados a ver.

Tínhamos um exemplo que foi o Vietnam. Eu me lembro de você dizendo, “não sei não, acho que os USA entraram em uma guerra onde vão ficar encalacrados”. Eu discordei. Achei que a vitória por si só era tão extraordinária ( não foi uma vitória militar trivial, os Estados Unidos tomaram dois países quase ao mesmo tempo com um custo ridículo de vidas ), e a causa tão justa, tão mais clara aos olhos da plebe (diferindo do Vietnam), que pensei que a sabotagem que já corria a mil por hora dessa vez não conseguiria se sobrepor a essa excepcional reação ao ataque ás torres. Mas, voltando ao ponto inicial, não houve nada de diferente do que aconteceu com Johnson Nixon, Ford. Um movimento de esquerda derrotou esses três governos.

Pode haver um pano de fundo para o futuro americano no mundo, um pano de fundo sonho do neoconservadorismo. Não sei o que significaria, no que seria diferente de outros sonhos de outros presidentes. Concordo que a política de detente tenha sido uma teoria criada por um homem, George Kennam e que tenha sido aplicada durante muitos anos. Concordo em que Reagan tenha sido um fundamentalista, que tenha aplicado uma teoria do bem e do mal com enorme sucesso . Concordo em que Kissinger seja um “realista” e tenha aplicado a realpolitik durante o governo do Nixon com um exemplo excelente na guerra árabes-judeus em 1973. (Com Nixon ele não estava se impondo, ou doutrinando, os dois compartilhavam do mesmíssimo pensamento, embora talvez Nixon nunca tenha sabido que estava exercitando realpolitik. Kissinger dizia que no plano interno Nixon era um arruaceiro político, mas que nas relações internacionais, era perfeito). Gostaria muito de saber no que Kissinger diverge na abordagem do Iraque. Pouco tempo atrás circulou entre nossos (seus) amigos uma entrevista, ou um statement dele. Se fosse alguma coisa importante eu acho que me lembraria. Ele é, claro, absolutamente contrário á retirada. Sentiu na pele, o que houve no Vietnam, sentiu na conferência de PaRIS, sentiu quando o Vietnam do Norte rasgou o tratado folha por folha.

Eu realmente não entendo como vocês não percebem que um país não pode retirar suas tropas em uma luta onde tem superioridade militar. Pelo menos deveriam reconhecer o quanto fortalece o inimigo o simples mencionar dessa hipótese. E suponho que todos consideram os terroristas como inimigos. Os motivos políticos que impedem uma vitória a médio prazo podem ser enfrentados de mil formas. No caso do Iraque até deixar haver uma carnificina entre eles, enquanto se aguarda dentro dos quartéis. Existem mil soluções, mas tem que haver um mínimo de patriotismo. É aí que entra a esquerda. E é aí que você acha que eu estou sendo medíocre, sem dúvida.

Não sei, ou não me lembro, de como foi chamada a política de Kennedy, em que teoria ele estava ancorado. Ele tem o meu respeito por ter sido um homem muito corajoso. No mais, a tal turma intelectualizada chamada de “Camelot” era um bando de alcoólatras, estupradores, ricos mimados. Qual a diferença entre Kennedy invadir o Vietnam, Johnson continuar e Nixon terminar eu não sei. Tivemos dois democratas e um republicano fazendo o que tinham que fazer, concordo inteiramente com eles. Isto deixando de lado Eisenhower que foi o início do início. Eu vejo a guerra do Vietnam com a esquerda, os democratas, derrotando a direita, os republicanos.

Hillary foi a favor da guerra do Iraque. Muitos outros democratas também. Quer dizer que o neoconservadorismo, neste momento, está na maneira de conduzir um conflito dentro do país vencido ? É isso ?

Existe um outro ponto importante. Nós damos valor a sentimentos de honra, lealdade, dignidade enquanto pessoas. Quando se refere a Estados a tendência dos intelectuais, a tendência da esquerda, é achar que não se aplica, que é ingenuidade, que é ridículo pensar que um presidente americano tenha esses princípios em sua política externa. É um tremendo engano. Não quero falar sobre wilsonianismo. Quero dizer que na guerra pelo mundo AINDA existem os bons e os maus. Igualzinho ao faroeste (se alguém me vê dizendo uma coisa dessas me rotula como debiloide) Na Bélgica eu vi um correspondente dizendo sobre a guerra nos Balcans : “ aqui não existem mocinhos e bandidos, todos são bandidos” Concordei imediatamente. Diferente do Iraque onde eu sei que os mocinhos são os americanos, ingleses e os fantásticos australianos, e os bandidos são os terroristas. Colocar “sofisticação” nisso, colocar petróleo, interesses de corporações, Rumsfeld bandido, para mim é tipo teoria conspiratória ou anti-americanismo brabo, ou as duas coisas juntas, o que é o mais comum.

Acabei de abrir ( na livraria) um livro enorme sobre o Oriente Médio escrito por um correspondente, acho que inglês (Fisk ?). Com um passar de olhos joguei de volta na mesa. Falava que o saque após a queda de Baghdad, o famoso saque, o tal que inclui o museu, tinha sido culpa dos americanos, e o sujeito esbravejava : “ESTA SITUAÇÃO, SEUS FIHOS DAS PUTAS, ESTÁ PREVISTA NA CONVENÇÃO DE GENEBRA!” Agora imagine os jovens do exército se deparando com uma situação para a qual jamais poderiam estar preparados. Eles não são polícia para sair distribuindo pescoções. O que eles deveriam fazer ? Atirar nos saqueadores ? Riculamente correr atrás deles para tentar prende-los ? Teria sido hilário, e criticado por isso. E de que jeito ? Com toda aquela armadura em cima ? Dar tiros para cima, causar pânico, se arriscar a alguma coisa grave, muito além do saque ? Tiros são tiros, ninguém se iluda. A melhor decisão foi aquela mesmo. Deixar correr solto. O que vale um saque depois da tomada de um país, depois da derrubada de um tirano ? Sem duvida, se Clinton fosse o presidente, os meninos saberiam EXATAMENTE o que fazer, não?.

Mais a frente o carinha dizia que o exército de libertação logo virou exército de ocupação, “PORQUE ELE VIU OS SOLDADOS AMERICANOS TIRANDO A ROUPA DOS POBRES DOS IRAQUIANOS PARA REVISTÁ-LOS, COM MEDO DE QUE FOSSEM HOMENS-BOMBAS!”. Para ele ( é um sujeito famoso) os soldados deveriam ser mártires, é a conclusão. Não posso acreditar que amigos nossos caminhem por essa trilha.

Agora eu volto a perguntar, você já viu entre as dezenas de artigos que lemos, talvez centenas, sugestões de como se deveria fazer no Iraque ? A única coisa que eu sei é sobre o famoso “é preciso ter um plano” do Kerry, (nunca explicou no que consistia “o plano”), e “a retirada”. Nada mais nada menos. Você vê, de montão, os articulistas contando histórias sobre o oriente médio, e dizendo asneiras monumentais, feito aquela que eu escrevei a você, o Fukuyama dizendo que os USA eram os culpados morais pela carnificina entre xiitas e sunitas.

No meu último e-mail eu fiz a pergunta sobre as informações contidas no livro O Vulto das T0rres. De posse daquelas informações você consideraria que o Iraque e a Al Qaeda eram parceiros, ou esperaria até que tudo se confirmasse com alguma coisa muito mais forte, que para falar a verdade eu não sei o que seria ? O livro não diz se havia fotos de satélites sobre os encontros. Mas a verdadeira pergunta é a que vou roubar de uma entrevista do Jarbas Passarinho . Dizia ele : “um terrorista encontra-se detido em um vestiário do campo de futebol e vai estourar uma bomba em 10 minutos matando 50 mil pessoas. O terrorista deve ser torturado ?” Ver o meu artigo clicando em cima do título: Você torturaria um terrorista ?


Cláudio: a discussão é longa. Mas você não pode passar por cima do fato de haver doutrinas de política internacional que influenciam os diplomatas, militares e estrategistas de modo geral. A teoria do dominó existiu, a da guerra revolucionária também, e por aí vai. Se o Bush tinha ou não a proposta de democratizar o Oriente próximo não importa tanto. Seus auxiliares principais tinham essa visão. Um sujeito feito o Wolfowittz certamente subscrevia, como professor universitário, a uma dessas teorias. As obras desse grupo foram analisadas, suas propostas práticas discutidas, etc., donde serem conhecidos como neoconservadores. Isso o artigo aponta bem, soubesse ou não o Bush em que se baseavam seus executores e auxiliares. Logo quando foi feita a invasão do Iraque, devo haver-lhe enviado dois longos artigos em que a doutrina neoconservadora era examinada. Os Rumsfeld, Wolfwitz e outros não escondiam sua visão de mundo, então não foi nenhuma inferência de leitores, pois se trata de uma doutrina exposta em livros e artigos. Assim com a doutrina Morgenthau, que nos recorda agora esse autor. O ponto do artigo dele é, precisamente, mostrar que a doutrina deste último levaria a questionar muito a invasão recente, como o fizera o próprio autor com a do Viettnam. Isso o grande traçado, com todos esses pormenores que você aponta, mas que, a meu ver, não anulam a tese principal de ser uma política fundada numa visão doutrinária e estratégica. E se a invasão não deu certo por ter havido dissenso interno nos EUA mostra que o Bush e seu grupo raciocinam em termos de um sistema que não é o americano, em que há oposição, imprensa e mil pontos de questionamento. Que foi, até, até recentemente, muito suave, pois raramente um presidente americano acumulou tanto poder e prestígio popular. Foi por ter dado com os burros nágua, no após invasão, que perdeu esse prestígio e, agora, as eleições parlamentares. Abraço,



Gosto de ver esses artigos para me atualizar com o pensamento liberal. Discordo de 99%, meu desejo é o de responder ponto por ponto, mas nem seria bom para mim e nem para você. Limito-me a dizer que com o tempo premissas completamente falsas tornaram-se aceitas universalmente, e sobre essas bases de “verdades” construiu-se um castelo imenso. Um exemplo é o de que os USA querem transformar os países do Oriente Médio em democracias. É falso, e já foi dito pelo Bush muitos anos atrás, eu vi e ouvi. Óbvio que é um desejo, mas o governo americano não joga todas as suas cartas nessa aposta. Não sei se você leu o Pulitzer de 2006 – não ficcão- O Vulto das Torres, escrito por um colunista do New Yorker, portanto insuspeito. Ele diz na página 326: …”houvera uma série de contatos entre o Iraque e a Al-Qaeda desde o final da primeira guerra do Golfo………Em 1992 Hassan al-Turibi promoveu um encontro entre o serviço de inteligência iraquiano e a Al Qaedacom o objetivo de construir uma “estratégia comum” (aspas do autor)….Queriam que Bin Laden parasse de apoiar os insurgentes anti-Saddam. Osama concordou, mas em troca solicitou armas e campos de treinamento dentro do Iraque.Naquele mesmo ano Zawahiri viajou até Bagdá onde se encontrou com o ditador iraquiano em pessoa” ….”agentes do serviço secreto iraquiano voaram até o Afeganistão a fim de discutir com Zawahiri a possibilidade de transferir a Al Qaeda para o Iraque” Tem mais coisas mas estou com preguiça de escrever. O autor , para salvar a pele, diz : “Mas não há nenhum indício de que o Iraque tenha chegado a fornecer armas ou campos á AlQaeda”. Bem, a CIA e outros seviços secretos não iriam chegar ao requinte de saber TUDO. Você não acha que o que está escrito, e eu tenho como verdade, já era suficiente para que informassem ao presidente de que deveria haver um elo entre Saddam e a Al-Qaeda ? E tem mais,  o serviço secreto britânico, ou M-6, e o presidente Putin disseram a Bush que as armas de destruição em massa estavam lá. Ponha a mão na consciência. Nada disso é discutido. Não adianta. Todos estão com a cabeça feita. Abraço.


 

20 fevereiro, 2012 às 21:19

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Categoria: Artigos

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